As Inauditas Crônicas de Bostoiévski
"Sou qualquer coisa judiada de ventos" Manoel de Barros
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
Em algum dia de 2011
terça-feira, 17 de julho de 2012
Só escrevo para você
tão inocentes,
das nossas sombras em conjuntura com a parede do quarto, da janela entre aberta e os galhos das arvores, os passaros e sonhos curiosos com o que acontece do lado de dentro, dos sons dos nossos estomagos às cinco da tarde, dos estalos dos meus dedos, do seu sorriso,
tão inocente,
do relógio que toda vez que olho marca dez e dez, ainda que seja quatro e meia, sempre dez e dez e a saudade com a impressão de que parou no tempo e nos levitamos no universo contando que será dez e dez para sempre, saudades de quando batímos foto um do outro escondido,saudade das viagens que já fizemos e das que faremos, sinceramente, são destas últimas que sinto mais saudades.
R.B.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Confusão
Eu não sou isso, não posso ser isso. Deus me livre andar assim, mover as mãos desse jeito. Nem vou falar mais nada para não acharem que essa é a minha voz; amanhã mesmo vou marcar uma consulta com algum médico, um daqueles que olham pra você, colocam aquela porcaria gelada no seu peito, pedem pra que abra a boca e diga ahhhhhhhhhh. Decerto que depois que eu fizer o ahhhhhhhhh ele vai perceber o mesmo que eu e dizer
- isso aí não é você. Provavelmente engoliu alguma coisa, um besouro talvez. Com que freqüência se exercita? Come verduras? Fique em repouso de tudo, de preferência deitado, sem pensar em nada. Logo vai ficar bom, pode confiar.
Sem dizer se vou deixar de ficar repetindo:
- Eu não sou isso, não sou aquilo.
Sem dizer se não vai mais estranhar o gosto por coisas estranhas como macarrão e salsicha com saque barato.
- Doutor, gostaria de perguntar uma coisa: nada nem ninguém me tira da cabeça que o réquiem de Mozart foi escrito para mim. Acho que ele sabia que naquela ruinha de merda, onde eu tenho meu quitinete, aqueles três pratos pra lavar há tanto tempo que a sujeira deve estar planejando mudança, as cadeiras com formatos de estranhos, que toda vez que eu sento estão quentes e há mensagens indecifráveis com um batom que vem sei lá de onde para mim. Ele sabia. O que acha doutor?
- Olha rapaz, vou lhe contar uma coisa, Hamlet foi escrito em minha homenagem, sabia? Tenho convicção que Shakespeare praticava alguma espécie de vodu ainda não descoberto pelo homem branco, mas que ele viu em algum sonho maluco, depois de bebedeiras regadas de calor do peito de alguma jovem marota. Portanto, acho perfeitamente possível que Mozart tenha escrito para você seu réquiem. O que devemos pensar é por que diabos ele não o terminou.
Deixo a sala do médico com tantas perguntas que nem tenho certeza se de fato me consultei ou se sonhei tudo isso. Minha cama ainda está quente e os lençóis muito bem dispostos contra o meu corpo, tudo está quieto dentro dos armários e as baratas estão diante da geladeira, esperando comida. Não sei como dizer a elas que não tem nada.
- Não tem nada aí. Ouviram? Ao invés de ficarem aí paradas poderia ter ido à padaria e trazido algo, um pão doce de banana, o resto dos copinhos de café mal lavados.
Nesses copinhos não se consegue beber com o mindinho erguido, uma vez vi uma mulher linda, olhos de mulher linda, boca de mulher linda, bebia o café maravilhosamente, com o dedinho erguido, coisas que as mulheres lindas sabem fazer como ninguém. Nada tão solitário como uma mulher linda: ouçam o que eu digo e não fiquem paradas, vão buscar algo para comer que hoje teremos somente suspiros e arrotos enfastiados. Faz um frio danado e não tenho condições de colocar o dedão para dentro da meia e deixar o buraco na sola do pé.
Faz tanto tempo que estamos assim que nem me lembro como viemos parar aqui; um belo dia estava perambulando pelas ruas da cidade, olhando as vitrines das lojas, sonhando tênis com molas, calças repletas de bolsos. Me interessavam mesmo as camisas com bolso, as jaquetas que se podia usar com a gola pra cima pra causar efeito nas mulheres lindas e seus dedos em riste após os almoços de passarinhos comedidos.
Teve um tempo em que eu comia tão bem. Fazia mais do que três refeições, como faço agora, se é que pão amanhecido, raspa de manteiga e café congelado são considerados refeições.
O Manoel que não me ouça reclamando que logo me põe para correr ou vem me falar de emprego:
Sempre tem uma dona precisando de alguém para consertar o chuveiro.
As goteiras que não cessam na cozinha e eu sem coragem de dizer que se eu soubesse consertar o chuveiro teria arrumado o meu.
se eu soubesse consertar um chuveiro teria arrumado o da dona e tinha comprado um pra mim. Aí talvez tivesse dinheiro para abrir uma loja, comprar uma caixa de doces de hortelã, dois por um real, numa promoção imperdível perto do terminal de ônibus, onde todo mundo de repente sente uma vontade incontrolável de comprar doce de menta, e fazer fortuna com isso.
Começo com doce da menta até chegar nos de melancia e banana. Há tempos que não vejo chicletes de banana. A criançada ia ficar doida ao ver um chiclete de banana, iam mascar aquilo o dia todo até virar uma pasta estranha e difícil de passar pela língua, de confundir com saliva, e vão engolir tudo, esquecidas que é chiclete e pode dar nó no estomago como diria minha vó; mas eles vão engolir porque não se cospe chiclete de banana, e vão pedir para mãe comprar mais. E eu vou aparecer nos programas de teve contando as minhas histórias, de viver entre paredes falantes, e como aprendi a falar o idioma das fadas.
Quando eu tinha luz no quarto as fadas rondavam a lâmpada para me agradar, como se fosse num baile animado,uma ciranda que eu não me continha e dançava com elas, que às vezes me mordiam e me beijavam, ferozes, ficava com dor dias e dias, me ardiam e inchavam os braços.
O Manoel me via deitado na calçada e falava
- Mas que é isso no teu braço?
E eu dizia com um sorriso que foi briga com fadas e ele me chamava de maluco varrido e passava álcool na ferida. Aquilo doía mais do que comer pão velho, mais do que tomar café gelado e não lembrar como que foi acabar a luz, de uma vez por todas. Como é que numa noite luzes multicoloridas invadiram minha sala, gritando e pisando tão forte no chão que achei que fosse ruir e fossemos todos cair na porcaria do inferno. Eles que se diziam policiais, me expulsaram da minha própria casa, dizendo que eu não podia morar ali, que o dono queria que eu saísse, e é óbvio que no susto não se consegue formar direito as palavras e dizer certinho o que aconteceu; na hora não consegui dizer que não tinha ninguém morando ali não que era só eu desde sempre, que também quem quisesse morar ali comigo podia aparecer, ia ficar até mais fácil para conseguir comida, bebida; alguém para cuidar da casa toda vez que eu vou ao médico. O médico da garganta.
- quando eu era novo eu fumava muito e não era tão divulgado que fazia mal, então todo mundo fumava, até os animais fumavam naquele tempo se não me engano, creio que vi uns cavalos fumando uma vez, parados na frente do bonde. Vocês sabiam que aqui mesmo nessa rua passava um bonde?
Eles me empurravam para fora, sem me deixar ver se ficou alguma coisa para trás, algum retrato de quando eu era forte, alto, novo, usava chapéu e bigode fino porque era disso que as mulheres gostavam. Acho que eles não acreditaram que me expulsaram num meio segundo e me vi parado, simplesmente parado na rua sozinho.
Foi aí que fiquei. Não muito, mas velho. Passei a trocar os nomes das pessoas, e quando eu aparecia na padaria pedindo alguma coisa para o Manoel ele dizia que Manoel o que o vagabundo.
- Poxa Manoel, sou eu!
Ele falava que Manoel o que, tá louco? E de tanto ele perguntar se eu tava louco, por uns dias comecei a desconfiar e passeia observar, como quem vai pintar um quadro, um Rembrandt e se confunde todo de ignorância. Eu mesmo, hoje em dia, me confundo trocando os médicos e entrando nas consultas dos outros. Até em consulta de mulher já entrei, e achei graça, e a enfermeira achou graça;, me ofereceu um café que eu tive que cuspir porque estava frio.
Eu que já fui algum professor de alguma coisa, falo umas coisas inteligentes às vezes; mas faz tempo, o quadro negro ainda era negro e não umas telas automáticas como se vê nas televisões, no jornal, na novela. As coisas mudam tão rapidamente que já não se consegue acompanhar nada, nem o sol. Tem dias que a gente transpira como se estivéssemos lá na África, que é quente a beça.
Quando estive lá se não fosse uma moça, que tinha um jeito para cuidar dos homens da vila, tinha morrido de sede, de carência, de tristeza. Aquela mulher salvou minhas noites, meus dias e quando eu vim embora ou a troquei por uma outra branquela que eu nem gostava - mas não era de dizer não -, me fez um trabalho de confundir as coisas. Eu trocava nome das duas a branquela me mandou de volta para o Brasil, mas isso faz tempo, eu nem morava no terminal de ônibus ainda, era ainda forte, ainda mascava chiclete com vigor, como um boi macho mastiga a grama, já viram boi macho mastigando a grama? Todo homem que se preze devia passar um dia com um boi macho, pra ver o que é ser homem de verdade.
Eu mascava chiclete e ficava apoiado no muro com esses fones de ouvido, ouvindo música que as mulheres hoje dançam, me achando esperto, inteligente, com uns trocados no bolso, até cigarro eu tinha, e às vezes fumava, e entre um cigarro e outro parava para ver as horas, e jogava a bituca no chão com jeito de galã e caia na noite pra ver as mulheres dançarem ao ritmo de música, que hoje nem é considerado música que não toca em lugar nenhum.
Me lembrei que eu, agora pouco, estava rindo porque nunca imaginei que musica morria, ainda bem que quando eu ensinava as meninas do coral a cantar eu não sabia disso, senão tinha desistido e as convencido a jogar amarelinha ou a brincar com bonecas invisíveis. Na minha vila tínhamos que improvisar brinquedo com latinhas, pedaços de pau, bolas murchas. Isso foi por pouco tempo, que minha mãe logo me levou no médico, que disse que eu era um gênio como nunca antes visto e ia ter um futuro brilhante descobrindo a cura de umas doenças, que iam matar a gente mais rápido que um tiro.
O médico sabia do que tava falando; me recordo da minha mãe fazendo o sinal da cruz, e eu fazendo o sinal da cruz, e o médico também fez e as crianças gordinhas no porta-retrato também fizeram; naquela época os médicos sabiam o que faziam e só de olhar pra gente podiam dizer que era gripe, pneumonia, manha.
Eu desatei a estudar a cura das doenças nas pernas das meninas da minha idade e estava sempre em forma de tanto correr dos irmãos delas. A vida era uma maravilha, não era doutor? Eu sei que eu não sou isso. Eu sei que não, que nem a minha voz eu reconheço, mas tenho certeza que tem cura, só não me diga que nunca mais vou poder mastigar meus chicletes de banana e tudo vai ficar bem.
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Ai de mim!
Ai de mim!
O que poderia ter sido
E não sou.
Nada.
Nada.
Senão essa porta batida do coração
A janela do terceiro andar dos teus olhos.
Ai de mim!
A garganta fechada,
As visões sem direção,
As lágrimas desencontradas em nossas bocas,
O medo rondando nosso jardim.
Tudo o que queria,
E não sou.
As sombras na sala esperam o baralho,
Eu espero o corte
A dor e o sangue
Preso ao redor dos olhos
Da noite
Ai de mim!
Ai de mim!
Que danço no escuro
Que rio baixinho
Que perco a voz te chamando
Para sair de uma vez por todas
Dos meus sonhos
E cair nos meus braços
Cão
Às vezes não me identifico com nada
Que não seja aquele cachorro velho
Que de repente pára
Pensando na vida
Ou na morte.
quinta-feira, 22 de setembro de 2011
Eu te espero
Eu te espero,
Ainda que demore,
Que chova e o vento destelhe as casas,
Que os cães e eu fiquemos sem abrigo.
Eu te espero,
Ainda que esteja cansada demais para um carinho,
Que te bastam a sopa, a cama, o sono atrasado de noites em claro.
Eu te espero,
Ainda que o tempo não passe,
Que sejam dez para as onze para sempre,
Ainda que ele decida passar rápido demais
a ponto de esquecer que nem sempre fui careca e barrigudo.
Eu te espero,
Ainda que sem assunto,
Ainda que no mundo toda notícia que sucedeu teu nascimento seja enfadonha,
Ainda que não tenha o futebol,
Ainda que subam os juros,
façam-se novas leis e festas,
Ainda que insistam nas tragédias,
e haja poesia por demais esquecida.
Ainda que seja primavera,
Eu te espero,
Porque sem você,
A vida é só uma tela em branco.
sábado, 20 de agosto de 2011
Felicidade é lamber os teus pés
(das chuvas de papel, dos arlequins de fumaça e das letras de miasma)
definitivamente,
estou cansado.
Lá está ela (minha assinatura), meio escondida, meio cismada, caindo pelos cantos sem saber como se portar na frente de todo mundo. De onde estou posso vê–la (minha assinatura) encostada nas beiradas, desconfiando se o vestido que sugeri lhe cai bem. Segura a coceira e a vontade de espirrar. Não me encara nos olhos. Decidiu que não fala mais comigo por um bom tempo (minha assinatura); tudo por conta de alguns disparates que disse – completamente movido pela emoção – antes que chegasse, ignorando que algumas línguas, sem demora, correriam por todo o salão para me denunciar aos teus ouvidos (minha assinatura). Fui até onde estava, me fiz de desentendido, sorri e agradeci sua presença com muita cerimônia, feito um dândi copiado dos filmes que via na casa da minha avó anos atrás e que ela fazia questão de dizer: aqueles sim, eram homens de verdade (minha assinatura).
Acabo de concluir meu primeiro livro sem sentir aquela ânsia que dizem parecer com a chegada do primeiro filho ou do apocalipse sorridente nas mãos fumegantes do sol. Fui paciente a ponto de reler cada palavra umas dez vezes, de me orgulhar de muita coisa que não sei como pari e fazer vista grossa para tantas outras que não se aproveitariam nem para redação escolar; não foram suprimidas por conta da redução no preço dos trezentos exemplares, pagos por mim antecipadamente.
Não vou mentir e dizer que foi fácil ou que as palavras escorreram de mim como suor, como lágrima de vinho no bico da garrafa diretamente para tua boca. Passei dias perdido entre linhas geometricamente perfeitas, justificadas apenas para mim e palavras, muitas palavras, que não caberiam em nenhum dicionário do mundo. As maiúsculas se postavam na frente do grupo, feito um executor aguardando as minúsculas terminarem de se enfileirar, homogêneas, cabisbaixas, cônscias da bala surda do ponto final e do despropósito de sua existência.
Aos poucos, – com certo regozijo, devo confessar – fui arquitetando genocídios, crimes passionais, inauditos arrependimentos e perdões injustificáveis, todos amoldados com sonhos e letras do meu próprio punho. Inventei nomes, pigmentação de olhos e dentes que preenchiam bocas em itálico; decerto que menti, criei tramas e as anunciei como se fossem verdade, fiz com que acreditassem em tudo, em tudo! Contudo, não agi sozinho. Fui orientado por uma voz que se apresentou como guia, como cúmplice, mas, quando perguntaram de onde vinha ou o que fazia aqui, se calou como tristeza de mulher.
Minha jornada teve início com o eco do porta–malas se fechando, assobiando tua canção nos meus tímpanos a viagem inteira; fiquei agoniado, pois as árvores encurvadas na calçada davam à cena um ar de despedida; te procurei no espelho retrovisor, achei que estaria acenando o lenço invisível da saudade e que talvez, escondesse com muito esforço lágrimas temerosas de uma futura solidão. Via o asfalto pela metade, carros pela metade, via que seu jardim começava a florescer, que há dias não recolhia o jornal do chão e que você não estava lá. Deve ter corrido para atender o telefone, justifiquei em seu favor.
– Se você acha que ficar numa cabana vai te ajudar, pode ir. Por mim tudo bem.
Insatisfeito, queria novamente sua opinião. Tinha sede das suas teorias, comparações, diagramas. Houve períodos em que, zelosa, chegou a usar meu mapa astral como bússola para dar seus pitacos. Mas depois passou a imitar a postura do seu psicanalista – que não saía da tua boca e da nossa mesa de jantar –: cruzava as pernas, apoiava o queixo nas mãos e espremia os olhos feito dois limões à guisa de transformar em suco seu parecer, suco de: se é o que te faz feliz, vá.
– Acho muito perigosa essa história de ser feliz.
Me defendia, cerrava os olhos e beijava seu ombro gelado enquanto ornava metáforas para homenagear tua paciência e teu ronco de cocote francesa. Uma estranha sensação do psicanalista sentado na cabeceira, dividindo o bloco de anotações amarelado entre transcrições de nossas conversas e desenhos do seu corpo nu, me perturbava o sono.
Movido pelo barulho dum lápis imaginário pincelando teu corpo desnudo da camisola de seda, decidi ficar por uns tempos na cabana do meu avô, bem no interior da cidade, para concluir algumas frases que faltavam no meu livro e transpirar raciocínios que julgava brilhantes, porém ao seu lado ficavam tímidos e se negavam a sobressair. Aqui tenho distrações demais: suas coxas e seios lunares, as contas escondidas debaixo do capacho escrito welcome da porta da rua, as tardes fumando cigarros de névoa, esfumaçando a minha imaginação. Talvez seja melhor, talvez seja melhor ir para o interior.
– Vá, querido. Eu até pegaria teu mapa astral para confirmar algumas coisas, acontece que tirei ele da gaveta de cuecas e coloquei não sei onde.
A cabana cheirava a merda de cavalo; o único móvel servia de café da manhã, almoço e janta para traças e cupins; a cama se resumia a um estrado que só de encostar rangia de dor.
Logo nos primeiros dias senti o sangue correr nas minhas veias de morto–vivo em estado de graça, exibi para um espelho rachado os vãos entre os dentes de uma boa ideia quando a tinha. Cheguei inclusive a acostumar–me com a visão destes dentes amarelos por culpa do café sem açúcar e do cigarro. Isso num tempo em que achava que não conseguiria escrever mais nada.
Bastou que me afastasse das calotas machucadas de tinta, do telefone e do computador para perceber que minha vida se resumia a reticências enfeitando páginas do jornal, buscas por Modiglianis nos espaços públicos e dedos em riste da minha mulher, me lembrando que há uma vida por trás disso, desse negócio que não arrisco adjetivar e que chamam de literatura.
Toda vez que tocávamos nessa nota um diapasão rompia e eu orquestrava uma retórica em dó maior, balançando as mãos para dissolver seus pensamentos no ar, para afastar qualquer possibilidade congruente de defesa da minha parte; balançava as mãos como quem espanta mosquitos e libélulas recém–nascidas, só para não dizer que sabia que a literatura é um sonho sem voz, sem imagem, que não tem sequer talento para existir sozinha. A literatura é um gato cego e banguela que não se consegue alimentar – pois somos nós, sempre, que sentimos sua fome. E o pior, meu amor, é que eu sei, eu sinto no fundo da minha alma que esse gato títere desdenha minha atenção, meu carinho, minhas noites em claro. Por isso insisto em negar peremptoriamente minhas quedas abismais com doses homeopáticas – três vezes ao dia – de absinto, vinho barato e saquê; não quero ouvi–lo ronronar pelos cantos ao ver que padeço de uma fome que não é minha.
Conto com teus afagos espirituais quando voltar dessa sensação de sonho in albis, meu amor. Você não respondeu e, quando pensei em repetir tudo desde o começo fui atingido por uma seta feita daquelas libélulas recém–nascidas que descrevi antes e só servem para dançar jazz no meu peito retórico e fatigado de adjetivações.
Se é o que te faz feliz, vá. Se é o que te faz feliz, vá.
Pelas manhãs, emocionado com insetos que morriam no chão do meu quarto, num ato contínuo e inconsciente, como aquele em que se abre a boca para deixar o vômito romper a barreira dos lábios, meu lápis virou um extintor de serpentina e, sei lá por que o saquê ficou com gosto de suco de laranja, as páginas se consumiam por si próprias e o tempo voou sequestrado no bico de um canarinho.
Na minha cabeça, você, minha querida, é um anjo caído que me ergue ao vácuo dos céus oxidados, em oferenda ao Deus dos que sangram perpetuamente numa hemorragia impossível de estancar. Eu abro os braços em redenção porque sei que logo eu também terei um ponto final para me emudecer; logo, eu também serei apenas uma voz que se calará no momento oportuno, que saberá encontrar o caminho de volta às pernas escancaradas, à placenta, aos pelos, ao choro que sucede o primeiro tapa da vida, à primeira infância e que depois paulatinamente sufocará pelas cobranças, pelos chefes, pelas feijoadas e pastéis de queijo até morrer de sono num domingo ensolarado de Páscoa. Abro os braços porque gosto do barulho das mãos que se esbofeteiam, das folhas que se amassam e caem fora do lixo; gosto dos serafins baforando cachimbos de bola de sabão enquanto pinto minha alma com nanquim nas bordas do meu caderno infinito.
O que você está fazendo, perguntam os curiosos. Estou brincando de ser Nassar. Em coro vão dizer que não, não posso ser Nassar; não posso ser Dickens, Dostoievski ou Drummond. Não posso ser a letra D ou nenhuma outra. Não posso ser o sonho e o espírito desencarnado da solidão responsável pela alvura das paredes dessa cabana de esquecimento, não posso ser a inspiração e a transpiração, não posso ser nada além da insônia e do cheiro insistente de merda dos cavalos que nunca passaram por aqui. Se é o que te faz feliz...
Diz, o que é mesmo que você está fazendo? perguntam olhos injetados de curiosidade. Eu quero criar uma pessoa que come água como se fosse bolo de fubá, que toma saquê com gosto de suco de laranja; criar a possibilidade de se apreciar uma xícara de café sem açúcar e quero ao meu redor pessoas tenras, que se abraçam com sinceridade e acham graça quando digo que Macunaíma c´est moi...
Por muitos dias me deitei somente para dialogar com a vista alva dos olhos cerrados. Não consegui dormir um segundo sequer, ora por causa do ranger da cama – que se incomodava a cada batida do meu coração fraco –, ora por conta dos latidos insones. Rompi horas escrevendo umas poucas frases na minha cabeça, torcendo para que você as achasse brilhantes. Perdido nas entrelinhas de um poema inventado percebi que só dormiria se pensasse em você (ainda hoje pensar em você é como uma droga que aguça meus sentidos, amolece minha razão e rouba meu discernimento): principiei pelo teu perfume de anis, segui pelo lilás das suas unhas e me embarafustei pelos teus cabelos desgrenhados, rolei até teu umbigo, onde, num movimento brusco de tosse, fui jogado de volta para o lençol.
Entrei num estado torpe de sonolência pouco depois de rememorar nosso casamento. Lembrei dos dias em que adquiri o hábito de deixar no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, textos meus, ou trechos de livros que julgava bonitos, ou mesmo rimas das músicas que ouvia você cantando baixinho no chuveiro, trocando as letras, confundindo as melodias. Achava graça quando seus amigos diziam que meu talento se resumia a copiar frases de impacto e lamber teus pés. Sempre esperei que dissesse algo em defesa do meu gosto poético ou preferência por pés. Você bebericava sua piña colada e pedia para que falássemos doutra coisa. Paguei, seguindo conselhos de sua irmã, um revisor para consertar meus textos. Ao lê–los revisados não os reconhecia, principalmente aqueles que o revisor fazia questão de assinar na condição de autor e enviar escondido para você. Rapidamente acabaram meus textos e meu dinheiro; decidi revisar os parcos textos que restaram sozinho e mandá–los para que lesse escondida, como fazia com os outros.
Assistindo ao mesmo filme todas as noites e recontando nossa história pelas manhãs apliquei tudo o que aprendi de edição e revisão de textos: comecei por revisar meu cheiro, segui por minha cueca, continuei por todas as minhas roupas, fotos três por quarto perdidas na carteira; revisei minha identidade e meus nomes, a chave do carro, as gravatas suspensas na porta do armário. Rasurei o meu passado e o meu presente, mudei meu tempo verbal para o futuro do indicativo; entre parênteses deixei abismos a serem preenchidos por verdades, inventadas, verdades mesmo assim. Apaguei tua risada das beiradas do que restava da minha folha em branco e rabisquei o endereço da nossa casa; troquei o número de nosso telefone por uma garganta seca e nosso cachorro por um bem–te–vi. Só aquele medo de ser feliz que não soube onde colocar: deixei-o espalhado por aí.
Aprendi que escrevia melhor tduo troto e que talevz foses uam boa idiea dexair mues tetxos em exopçisão na slaa do psinacalsita da mihna muhler, para que ele diag que é tduo atre plea arte, plea atre, plaa morte. A arte é a rdeneção da lama agrarada aos ossos. As lteras dnaaçm bolero melhor que as borboletas.
N0t4 m3nt41, 45 l3tr4s d4nç4m m3lh0r qu3 4s b0rb0l3t4s.
No rodapé fiz constar minha última nota: ainda temo essa história de ser feliz, especialmente na iminência do teu sorriso.
Amanhã voltarei; entregarei o manuscrito pra revisora, me livrarei de toda essa bagagem que encurva minhas costas e entrava minhas pernas. Voltarei a sujar a língua com a graxa dos teus sapatos, a desdenhar os arranha–céus feitos de nuvem e pássaros de grafite 0.5, pra descobrir de uma vez por todas, se é perigoso esse negócio de ser feliz. Você me dará tua espádua congelada a qual beijarei enquanto penso em trechos para copiar e deixar assim que amanhecer no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, misturado com páginas e mais páginas do fruto do meu refúgio e desenhos insones, feitos num bloco amarelo e sem linhas, do teu corpo nu.