Eu não sou isso, não posso ser isso. Deus me livre andar assim, mover as mãos desse jeito. Nem vou falar mais nada para não acharem que essa é a minha voz; amanhã mesmo vou marcar uma consulta com algum médico, um daqueles que olham pra você, colocam aquela porcaria gelada no seu peito, pedem pra que abra a boca e diga ahhhhhhhhhh. Decerto que depois que eu fizer o ahhhhhhhhh ele vai perceber o mesmo que eu e dizer
- isso aí não é você. Provavelmente engoliu alguma coisa, um besouro talvez. Com que freqüência se exercita? Come verduras? Fique em repouso de tudo, de preferência deitado, sem pensar em nada. Logo vai ficar bom, pode confiar.
Sem dizer se vou deixar de ficar repetindo:
- Eu não sou isso, não sou aquilo.
Sem dizer se não vai mais estranhar o gosto por coisas estranhas como macarrão e salsicha com saque barato.
- Doutor, gostaria de perguntar uma coisa: nada nem ninguém me tira da cabeça que o réquiem de Mozart foi escrito para mim. Acho que ele sabia que naquela ruinha de merda, onde eu tenho meu quitinete, aqueles três pratos pra lavar há tanto tempo que a sujeira deve estar planejando mudança, as cadeiras com formatos de estranhos, que toda vez que eu sento estão quentes e há mensagens indecifráveis com um batom que vem sei lá de onde para mim. Ele sabia. O que acha doutor?
- Olha rapaz, vou lhe contar uma coisa, Hamlet foi escrito em minha homenagem, sabia? Tenho convicção que Shakespeare praticava alguma espécie de vodu ainda não descoberto pelo homem branco, mas que ele viu em algum sonho maluco, depois de bebedeiras regadas de calor do peito de alguma jovem marota. Portanto, acho perfeitamente possível que Mozart tenha escrito para você seu réquiem. O que devemos pensar é por que diabos ele não o terminou.
Deixo a sala do médico com tantas perguntas que nem tenho certeza se de fato me consultei ou se sonhei tudo isso. Minha cama ainda está quente e os lençóis muito bem dispostos contra o meu corpo, tudo está quieto dentro dos armários e as baratas estão diante da geladeira, esperando comida. Não sei como dizer a elas que não tem nada.
- Não tem nada aí. Ouviram? Ao invés de ficarem aí paradas poderia ter ido à padaria e trazido algo, um pão doce de banana, o resto dos copinhos de café mal lavados.
Nesses copinhos não se consegue beber com o mindinho erguido, uma vez vi uma mulher linda, olhos de mulher linda, boca de mulher linda, bebia o café maravilhosamente, com o dedinho erguido, coisas que as mulheres lindas sabem fazer como ninguém. Nada tão solitário como uma mulher linda: ouçam o que eu digo e não fiquem paradas, vão buscar algo para comer que hoje teremos somente suspiros e arrotos enfastiados. Faz um frio danado e não tenho condições de colocar o dedão para dentro da meia e deixar o buraco na sola do pé.
Faz tanto tempo que estamos assim que nem me lembro como viemos parar aqui; um belo dia estava perambulando pelas ruas da cidade, olhando as vitrines das lojas, sonhando tênis com molas, calças repletas de bolsos. Me interessavam mesmo as camisas com bolso, as jaquetas que se podia usar com a gola pra cima pra causar efeito nas mulheres lindas e seus dedos em riste após os almoços de passarinhos comedidos.
Teve um tempo em que eu comia tão bem. Fazia mais do que três refeições, como faço agora, se é que pão amanhecido, raspa de manteiga e café congelado são considerados refeições.
O Manoel que não me ouça reclamando que logo me põe para correr ou vem me falar de emprego:
Sempre tem uma dona precisando de alguém para consertar o chuveiro.
As goteiras que não cessam na cozinha e eu sem coragem de dizer que se eu soubesse consertar o chuveiro teria arrumado o meu.
se eu soubesse consertar um chuveiro teria arrumado o da dona e tinha comprado um pra mim. Aí talvez tivesse dinheiro para abrir uma loja, comprar uma caixa de doces de hortelã, dois por um real, numa promoção imperdível perto do terminal de ônibus, onde todo mundo de repente sente uma vontade incontrolável de comprar doce de menta, e fazer fortuna com isso.
Começo com doce da menta até chegar nos de melancia e banana. Há tempos que não vejo chicletes de banana. A criançada ia ficar doida ao ver um chiclete de banana, iam mascar aquilo o dia todo até virar uma pasta estranha e difícil de passar pela língua, de confundir com saliva, e vão engolir tudo, esquecidas que é chiclete e pode dar nó no estomago como diria minha vó; mas eles vão engolir porque não se cospe chiclete de banana, e vão pedir para mãe comprar mais. E eu vou aparecer nos programas de teve contando as minhas histórias, de viver entre paredes falantes, e como aprendi a falar o idioma das fadas.
Quando eu tinha luz no quarto as fadas rondavam a lâmpada para me agradar, como se fosse num baile animado,uma ciranda que eu não me continha e dançava com elas, que às vezes me mordiam e me beijavam, ferozes, ficava com dor dias e dias, me ardiam e inchavam os braços.
O Manoel me via deitado na calçada e falava
- Mas que é isso no teu braço?
E eu dizia com um sorriso que foi briga com fadas e ele me chamava de maluco varrido e passava álcool na ferida. Aquilo doía mais do que comer pão velho, mais do que tomar café gelado e não lembrar como que foi acabar a luz, de uma vez por todas. Como é que numa noite luzes multicoloridas invadiram minha sala, gritando e pisando tão forte no chão que achei que fosse ruir e fossemos todos cair na porcaria do inferno. Eles que se diziam policiais, me expulsaram da minha própria casa, dizendo que eu não podia morar ali, que o dono queria que eu saísse, e é óbvio que no susto não se consegue formar direito as palavras e dizer certinho o que aconteceu; na hora não consegui dizer que não tinha ninguém morando ali não que era só eu desde sempre, que também quem quisesse morar ali comigo podia aparecer, ia ficar até mais fácil para conseguir comida, bebida; alguém para cuidar da casa toda vez que eu vou ao médico. O médico da garganta.
- quando eu era novo eu fumava muito e não era tão divulgado que fazia mal, então todo mundo fumava, até os animais fumavam naquele tempo se não me engano, creio que vi uns cavalos fumando uma vez, parados na frente do bonde. Vocês sabiam que aqui mesmo nessa rua passava um bonde?
Eles me empurravam para fora, sem me deixar ver se ficou alguma coisa para trás, algum retrato de quando eu era forte, alto, novo, usava chapéu e bigode fino porque era disso que as mulheres gostavam. Acho que eles não acreditaram que me expulsaram num meio segundo e me vi parado, simplesmente parado na rua sozinho.
Foi aí que fiquei. Não muito, mas velho. Passei a trocar os nomes das pessoas, e quando eu aparecia na padaria pedindo alguma coisa para o Manoel ele dizia que Manoel o que o vagabundo.
- Poxa Manoel, sou eu!
Ele falava que Manoel o que, tá louco? E de tanto ele perguntar se eu tava louco, por uns dias comecei a desconfiar e passeia observar, como quem vai pintar um quadro, um Rembrandt e se confunde todo de ignorância. Eu mesmo, hoje em dia, me confundo trocando os médicos e entrando nas consultas dos outros. Até em consulta de mulher já entrei, e achei graça, e a enfermeira achou graça;, me ofereceu um café que eu tive que cuspir porque estava frio.
Eu que já fui algum professor de alguma coisa, falo umas coisas inteligentes às vezes; mas faz tempo, o quadro negro ainda era negro e não umas telas automáticas como se vê nas televisões, no jornal, na novela. As coisas mudam tão rapidamente que já não se consegue acompanhar nada, nem o sol. Tem dias que a gente transpira como se estivéssemos lá na África, que é quente a beça.
Quando estive lá se não fosse uma moça, que tinha um jeito para cuidar dos homens da vila, tinha morrido de sede, de carência, de tristeza. Aquela mulher salvou minhas noites, meus dias e quando eu vim embora ou a troquei por uma outra branquela que eu nem gostava - mas não era de dizer não -, me fez um trabalho de confundir as coisas. Eu trocava nome das duas a branquela me mandou de volta para o Brasil, mas isso faz tempo, eu nem morava no terminal de ônibus ainda, era ainda forte, ainda mascava chiclete com vigor, como um boi macho mastiga a grama, já viram boi macho mastigando a grama? Todo homem que se preze devia passar um dia com um boi macho, pra ver o que é ser homem de verdade.
Eu mascava chiclete e ficava apoiado no muro com esses fones de ouvido, ouvindo música que as mulheres hoje dançam, me achando esperto, inteligente, com uns trocados no bolso, até cigarro eu tinha, e às vezes fumava, e entre um cigarro e outro parava para ver as horas, e jogava a bituca no chão com jeito de galã e caia na noite pra ver as mulheres dançarem ao ritmo de música, que hoje nem é considerado música que não toca em lugar nenhum.
Me lembrei que eu, agora pouco, estava rindo porque nunca imaginei que musica morria, ainda bem que quando eu ensinava as meninas do coral a cantar eu não sabia disso, senão tinha desistido e as convencido a jogar amarelinha ou a brincar com bonecas invisíveis. Na minha vila tínhamos que improvisar brinquedo com latinhas, pedaços de pau, bolas murchas. Isso foi por pouco tempo, que minha mãe logo me levou no médico, que disse que eu era um gênio como nunca antes visto e ia ter um futuro brilhante descobrindo a cura de umas doenças, que iam matar a gente mais rápido que um tiro.
O médico sabia do que tava falando; me recordo da minha mãe fazendo o sinal da cruz, e eu fazendo o sinal da cruz, e o médico também fez e as crianças gordinhas no porta-retrato também fizeram; naquela época os médicos sabiam o que faziam e só de olhar pra gente podiam dizer que era gripe, pneumonia, manha.
Eu desatei a estudar a cura das doenças nas pernas das meninas da minha idade e estava sempre em forma de tanto correr dos irmãos delas. A vida era uma maravilha, não era doutor? Eu sei que eu não sou isso. Eu sei que não, que nem a minha voz eu reconheço, mas tenho certeza que tem cura, só não me diga que nunca mais vou poder mastigar meus chicletes de banana e tudo vai ficar bem.