Transpus a porta do quarto do meu herói depois de ter ficado quase meia hora a encará-la como se fosse um quadro impressionista. Abri-a devagar para que não rangesse e chamasse a atenção das enfermeiras que cochichavam entre risos enquanto deixavam lençóis limpos nos quartos ou carregavam cadeiras de rodas vazias pelo corredor deserto.
Lâminas de sol bronzeavam as paredes brancas pintadas de neve, clareando o ambiente inteiro. Não havia um único familiar, enfermeiro ou médico para me desejar boa tarde dentro do quarto.
Assim, solitário e com um gosto amargo entre os dentes, dei meus primeiros passos que, pela incerteza do que os aguardava, saíram vacilantes e incertos. A aderência da sola de borracha ao chão rasgava o silêncio como se fosse um pedaço de tecido.
Ansiei tanto por este momento que as palavras se perderam e fiquei estático diante da cama.
Ele estava dormindo. Que sorte a minha. Justamente quando apareço, ele está dormindo, pensei. Decidi aproveitar o tempo para pensar na melhor forma de me apresentar. Não quero soar como mais um de seus leitores ou admiradores. Quero me distinguir dos outros que entram neste quarto todos os dias.
Eu encarava os braços do meu herói; palitos enrugados vieram à minha mente. Repreendi-me por esta comparação e por pouco não pedi desculpas em voz alta.
O vento estava calado e as cortinas imóveis como cadáveres. Um silvo distante e agudo tomou conta dos meus ouvidos. Incomodado, tapei as orelhas com os dedos, mas isso só fez aumentar o barulho, dei de ombros e me aproximei da cama com as mãos rentes ao peito, segurando um boné invisível.
Contornei a cama murmurando algumas palavras. Tentei lembrar alguns de seus personagens e ensaiei minha apresentação misturando a fala inicial de vários deles. Submerso em seus enredos e cenários sentei numa poltrona de couro antiga bem debaixo da janela; seu estofado era tão que velho que parecia uma cadeira de praia. Meus joelhos ficaram a altura dos meus olhos. Observei teu rosto por alguns instantes. Seu cabelo rareava numa cabeça pontiaguda e enfeitada por marcas escuras de vários tons de marrom; seus lábios eram finos e confundiam-se com a palidez da pele enrugada pelo tempo. Não era aquele homem que estampava a contracapa dos primeiros livros do meu herói, porém também não ostentava uma figura tão cadavérica quanto pintavam os jornais.
Mirava seus olhos na esperança de que logo abrissem e, possivelmente um pouco assustado, me perguntasse com sua voz de trombone: quem é você? No entanto apenas o silêncio se movia e continuava a despejar seu veneno por meu corpo. Comecei a me coçar; via o relógio a cada cinco segundos e não tinha sucesso em roer o resto das unhas. Dei para tossir, inúmeras vezes, de diversas formas e tons. Cheguei a pigarrear com tanta força que fui obrigado a tossir mais algumas vezes. Me conformei: ao invés de trocarmos palavras, ficaríamos a tarde inteira trocando silêncios.
Você não vai acordar?
Do outro lado da cama, havia uma pequena mesa onde jaziam três flores mortas. Suas pétalas eram negras tal qual as nuvens que se aproximavam de nós. Sorri. Essas flores expressam bem o meu herói, que em todo lugar dizia que queria ter um taco de snooker pra enfiar no coração da lua, pois toda vez que a via, sentia uma tristeza danada. Concluía qualquer conversa dizendo que somos apenas calotas rolando desconjuntadas pelas ruas mal conservadas da vida.
Emocionei-me ao lembrar de suas palavras e isso só serviu para aumentar minha ansiedade. Levantei, parei diante da tevê desligada e me vi no reflexo da tela. Ouvi um gemido de dor. Corri para a beira da cama e perguntei se estava tudo bem, se precisava de algo, se queria que eu chamasse a enfermeira. Não houve resposta. Continuava exatamente como antes. Um trovão riu de mim do lado de fora do quarto.
As cortinas se arregaçaram por conta da brisa gelada que penetrou no quarto. Fechei o vidro da janela e as cortinas sossegaram, não sem antes atingirem meu rosto violentamente na volta.
Parece que vai cair o mundo, disse após um novo trovão. Enfiei a mão no bolso e desdobrei uma folha amarela de papel.
---- Eu sei que está cansado e que dorme profundamente. Mas gostaria de ir embora antes da chuva, por isso, lerei agora um pequeno texto que escrevi ontem em sua homenagem. Nem consegui dormir. Passei a noite toda revisando, conforme você ensina em seus cursos. Começa assim: Que dirão as pessoas quando...
Subitamente alguém abriu porta do quarto e um grito contido de espanto me assustou. A enfermeira fincava seus olhos azuis esbugalhados em mim, ficou branca feito as paredes do quarto.
---- Quem é você?
---- Eu vim apenas para conversar um pouco com ele, mas estava dormindo, então decidi esp...
---- O senhor é da família? – perguntou sem se mover e sem tirar as mãos da maçaneta de metal.
---- Não. Eu...
---- Se retire, por favor. Apenas familiares têm permissão para ficar aqui. – interrompeu-me pela terceira vez
---- Desculpe, mas acredito que estou em horário de visitas. Acho que posso ficar aqui até as sete. – Olhei para o relógio no meu pulso que marcava seis e quinze.
---- Senhor, este paciente não precisa mais de visitas.
---- O que você quer dizer com isso? - Perguntei segurando minha folha de papel amarela que, contra a minha vontade começou a tremer. ---- Olha, façamos o seguinte: deixe-me ao menos terminar de ler esse texto que escrevi. Depois eu saio.
A enfermeira, aparentemente irritada com minha insistência, bufou e meneou a cabeça violentamente, apertou ainda mais forte a maçaneta da porta:
---- Senhor, finalmente algum parente decidiu aparecer para reconhecer o corpo e tomar as devidas providencias, portanto, é necessário que o senhor saia... agora.
---- Me desculpe, mas não saio. – Fingi que não ouvi dizer que alguém estava do lado de fora para reconhecer o corpo. Algum engano, pensei. Minha única preocupação naquele momento era que a enfermeira com olhos de relâmpago e pele de parede sumisse de vez.
---- Vejo que serei obrigada a chamar o segurança. – Sem fechar a porta ela sumiu pelo correndo e estávamos, eu e me herói, novamente trocando silêncios.
Antes de reiniciar a leitura do meu texto percebi que o lençol azulado que cobria seu corpo não se movia. Ele não estava respirando. Uma lágrima brotou no canto dos meus olhos e meu coração se afogou. Senti que tinha um liquidificador no estomago e achei que ia vomitar aos seus pés. O ar me vinha quadrado e machucava meu peito; queria conter os lábios trêmulos, mas eles imitavam minhas mãos. Nenhum trovão riu de mim nessa hora.
---- Que dirão as pessoas quando me virem com o mundo escorrendo pelos dedos... – retomei a leitura do meu texto, engasgando aos poucos com o sal das lágrimas, com dificuldades para encontrar as palavras na folha.
Sem que eu notasse, um gigante usando terno negro e gravata combinando invadiu a sala. Pude ver o reflexo do meu rosto assustado em seus óculos tão escuros quanto sua vestimenta. Ele ergueu a mão para me agarrar. Dei um passo para trás e enfiei meu texto de qualquer jeito no bolso.
----Está bem. Já entendi. – Enxuguei os olhos e corri para fora do quarto do meu herói.
No corredor uma mulher ao me ver caminhando em sua direção levou as mãos ao peito e engoliu uma bola de susto quando passei por ela. Segui para o elevador. Prendi a respiração e franzi o cenho para que não percebesse que chorávamos o mesmo choro, pelo mesmo herói. Um homem com mãos de urso acariciava seus ombros e desferiu o olhar mais maligno que conseguia inventar.
A enfermeira, pousando suas mãos finas e ossudas no ombro da garota disse:
---- Está tudo bem. Era apenas um rapaz que se confundiu de quarto. Não vai mais voltar, fique tranqüila.
A garota não respondeu, apenas meneou a cabeça afirmativamente e entrou no quarto do meu herói aos prantos, com alarde, sem o cuidado que eu tive ao entrar e não incomodá-lo.
Na rua acendi um cigarro.
Segui sem direção, passei por casas com paredes descascadas e janelas lacradas. Os bares estavam vazios e todos encaravam a novela na televisão sem piscar os olhos. Eu era um de seus personagens caminhando a esmo pela cidade.
No alto, o céu azul aos poucos era tomado pela cortina negra da noite e nuvens cor de grafite carregadas de lágrimas iguais as minhas encobriam tudo como uma manta. Tirei o papel amarelo todo amassado do meu bolso e joguei-o numa sarjeta qualquer. Podia ver a luz da Lua atrás de uma nuvem. Despejei toda a fumaça do meu último trago em sua direção. Quem me dera ter um taco de snooker, por que eu também quando te vejo, sinto uma tristeza danada.
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