quarta-feira, 16 de junho de 2010

A única saída - Ricardo Bruch


Eu preciso calar a boca, estancar o sangue, torniquete de sonho numa linha do futuro. Preciso ser mais direto, mais flecha, mais pássaro, submisso ao equinócio, mais pedra. E isso você disse numa segunda-feira à tarde, eu sentado no meu trono de mármore revestido com assento de plástico, lendo o jornal, com os pelos da perna duros de frio. Você falava e eu virava as páginas do jornal, nada do meu corpo atender à minha súplica: podia me inclinar para frente, para trás, forçar, deixar relaxado, era um rei que não justificava seu reinado, escravo da vontade que começava a julgar inexistente. Virava a página e você apoiada na porta, me observando, esperando para tomar banho; meus olhos desconcentrados identificavam sempre as mesmas palavras, mesmas linhas, mesma notícia; apenas passava os olhos pelas letras, sem sentimento, sem significado.
Nada saía.
Virei a página para que você achasse que estava compenetrado, preocupado com a economia nacional; franzia o cenho, mordia o lábio seco, meneava a cabeça em assentimento. Virei a página, um grito de letras garrafais pulsaram no mesmo tom frenético do meu coração cansado de corresponder ao meu esforço – nada saía.
Uma página inteira para me dizer que há 22 mil vagas de emprego. 22 mil vagas para que eu pudesse fazer o que quisesse da minha vida. 22 mil vagas, para advogados, engenheiros, arquitetos, vagas, mas nada para quem está há quarenta e cinco minutos com o rabo de fora, à guisa de exorcizar as pedras do destino rolando no estômago. E você me olha da porta do banheiro e as vagas (22 mil!) ululam e bóiam como a merda que eu tento parir, vagas para professoras, lixeiro, contadores, manhã, tarde, noite, nada que possa me ajudar no momento.
Faço força, você diz que estou vermelho como um pimentão, que não é certo fazer tanta força, eu paro, suspiro, os dedos não apertam o jornal com tanta esperança, eu sorrio para o rosto da minha mãe que se forma nos azulejos, de dentro do encanamento ela diz: A melhor saída é concurso público, e eu pensando em Hamlet, na Odisséia, no surdo-mudo da Fúria, do Som, do interior de uma cidadezinha onde eu talvez não precisasse de 22 mil vagas de zelador, frentista, bibliotecário, onde de dentro das paredes alvas do banheiro não precisasse ouvir minha mãe: A melhor saída é o concurso público. Eu escrevia versos, sonetos, sonhava com recitais, leituras de poemas ao ar livre, no Viaduto do Chá. Não é certo fazer tanta força assim.
- Escuta, vai demorar muito?
Você perguntou, impaciente comigo virando a página, tentando esquecer os conselhos das paredes, do vaso, do chuveiro que gotejou a noite inteira e não me deixou dormir; me concentrei nos pedregulhos que incham minha barriga, quase empurram meu umbigo para fora, me concentrei na dureza que fere meu intestino, e nada saía.
Um dia vi uma pomba ser atropelada por um ônibus. Suas penas voaram, ela rodou ao redor de si numa mudez agonizante de quem não sabe gritar nem pedir por socorro, apenas rodava com uma única asa, se perguntando por que não morrera na hora, com um golpe fulminante, por que estava lá, a girar, vendo as migalhas que há pouco mastigava, tingidas de sangue; no asfalto, vísceras e penas. Rodopiou até perder as forças e se aquietar na poça de seu próprio sangue. Um mendigo tentava chegar até ela mas semáforo não avermelhava. Soube que a pomba fora atropelada por que ele, com todo seu andrajo, fedor, repulsa, levou as mãos à cabeça e gritou: “Não!”. E lá estava a pomba quase morta, zumbi de si mesma, já sem observar nada, sem ver a roda dos carros, sem pensar nas migalhas, até que o golpe de um Volvo pôs fim ao seu sofrimento. O mendigo sentou no meio fio e chorou.
22 mil vagas.
22 mil oportunidades para se tornar vísceras expostas, angústias de meio fio.
22 mil oportunidades para 22 mil rodas porem fim ao sofrimento do homem.
22 mil vagas e a melhor saída é o concurso público.
Contenho a lágrima no canto dos olhos, faço força e gemo de dor.
- Conseguiu?
Não digo nada, fecho o jornal, coloco-o no chão, minhas mão se juntam, penso de novo em Hamlet e suas visões, em Dr. Fausto e nessa tarde de segunda-feira. Estou em casa criando raízes no chão gelado do banheiro, fazendo companhia para as vozes que saem de dentro do chuveiro.
E nada saía.
- Hoje eu vi uma pomba sendo atropelada.
- E daí?
Era uma pomba.
E foi atropelada.
Podia ter sido uma mulher pensando na vida, no namorado, na prova da faculdade, ou no exame de motorista que teria que fazer na sexta-feira que vem. Podia ter sido uma grávida, pensando no bebê nadando no ventre despreparado; podia ter sido alguém que acaba de conseguir uma das 22 mil vagas de emprego; 22 mil oportunidades de silêncio, doenças incuráveis e verrugas injustificadas. Podia ter sido você, ou eu, que só penso na merda dentro de mim, que se recusa a sair. Mas era uma pomba, e foi atropelada.
- Me lembrei disso agora.
- É só uma pomba.
É só uma pessoa, mulher, homem, segunda-feira, ônibus, roda de carro; São 22 mil empregos e nenhum tolete de merda nadando nesta privada.
Às vezes me sinto como um cemitério.
Não tenho coragem de te dizer isso, já que bufa, ameaça sair sem tomar banho, por minha culpa, por meu intestino vagaroso de velho precoce, cansada de esperar meu exorcismo malfadado.
- Estava pensando, concurso público talvez seja a melhor saída.
Você diz apagando o cigarro na torneira da pia.
Resignado, limpo a bunda, não olho o papel que permaneceu imaculado, dou a descarga e deixo o jornal no chão, o jornal e suas 22 mil vagas de emprego para administrador, químico, professor, e pego minha jaqueta enquanto você vê se a água do chuveiro está quente o bastante.
Busco pela rua migalhas e acaricio minhas lápides intestinais: nunca vão me abandonar.
Já não me sinto tão só, tão diferente por estar em casa numa segunda-feira à tarde, por não ligar para cada uma das 22 mil oportunidades de vazio, alegria self-sevice, happy hours tristes, deadlines, feedbacks, casas em Riviera, piscinas e churrasqueiras. Já não me sinto como uma pomba a se procurar entre as rodas, se procurar entre 22 mil vagas para se perder nos dentes da manhã.

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