quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Fim do Mundo - R.B.

- Pera aí, não se mexe,tem uma pétala de rosa na tua boca,
não me pergunte de onde ela saiu, mas estava aí, eu juro.
- Pronto.
Saiu? Como ela foi parar aí?
Queria te mostrar, era uma pétala linda, deve ter caído de alguma árvore e foi parar bem no canto da sua boca, perto daquela pintinha quase imperceptível que você tem em cima do lábio, aquela que eu gosto de beijar quando você se irrita,
eu teimo em buscar pétalas de rosa na sua boca.
Eu juro que tinha. Era uma pétala rosa,
linda.
- Eu juro que tinha,
Você pode não acreditar, mas às vezes eu vejo estrelas no fundo dos teus olhos, pode ser reflexo das que estão no céu, pode ser qualquer coisa, mas eu me perco e começo a imaginar coisas; você sabe, eu gosto de viajar, sem precisar de malas, gasolina, parada no posto para ver se está tudo bem, comprar chiclete, amendoim, água para a estrada. Plano de vôo, passagens.
Não fecha os olhos,
que eu quero me...,
Vamos até o fim do mundo.
- Opa. Mais uma.
Deve estar chovendo rosas, que é a segunda pétala que aparece no seu rosto.
Lá no fim do mundo, para onde vamos, isso não vai acontecer, prometo.
Você é linda.
Viajando,
nossos filhos serão lindos. Eu com certeza viajarei nos olhos deles, e verei estrelas cadentes, via lácteas, planetas, pontes, pedras, pés minúsculos de bebezinhos saudáveis; mas só com você eu vou até o fim do mundo, é perigoso para eles viajar por esse céu sem cinto de segurança, sem preocupação com as estações de rádio, que vão enlouquecer e de repente deixar-nos à sós para rir da vida, invejar os animais livres, os pássaros voando, beijando as nuvens; planejaremos nossa casa, os quartos, a cor do armário da cozinha, a cor das cadeiras, da nossa rede,
lá no sossego do fim do mundo.
- Vai chover.
Eu sei.
Só não me peça para ir embora.
Esse campo é mais aconchegante que minha cama (você sabe); ando me estranhando com meu criado mudo, com o rádio-relógio que herdei da minha vó e toda manhã toca a rádio errada. Toda manhã a mulher do tempo erra, mesmo quando diz
- Hoje teremos um bom dia.
Ela erra.
Todo mundo erra, você me diz, vez ou outra, para me acalmar, me tocando com as suas mãos quentes, calmas, cheirando estrada e céu azul.
Suas mãos têm cheiro de céu azul.
Eu insisto nessa coisa de chuva.
Não me diga que quer ir embora.
É cedo.
Daqui a pouco vai surgir a Lua, bem melhor vê-la daqui do que pela televisão, onde ela fica sem graça, sem razão, que nem eu, a buscar nas suas fotos pétalas de rosas no teu rosto e a pintinha tão linda que você tem no canto do lábio e eu gosto de beijar sem que você saiba,
- No que está pensando?
- Não sei,
Não sei.
Hoje teremos um dia lindo.
Às vezes a gente erra.
Pode acontecer qualquer coisa desde que estejamos juntos, eu, você, as pétalas da minha imaginação, a minha viagem à Lua dos nossos sonhos, nossos filhos.
Hoje teremos um dia lindo.
Não sei.
(Preciso dormir),
É cedo. (É tarde)
Hora de fazer as malas.
Não tenho mais idade para gravar seu nome com a caneta no meu braço, pintar campos cujo verde fica embaçado na minha cabeça, chuva de pétalas e estrelas cadentes, músicas de fundo, taças de vinho, jogos de prato,
Já é tarde, hora de fazer as malas.
- Que foi isso?
De repente as luzes apagaram. Senti um medo danado do dia acabar comigo acordado, sabe,
- Não se mexe.
- O que foi?
- Fecha os olhos.
Por favor.
Vamos viajar até o fim do mundo.
Sabe, um dia eles vão crescer, vão me achar estranho, barrigudo, maluco, meus acordes fora de tom, meus dedos desajeitados procurando alguma coisa no seu rosto,
- Não se mexe.
- O que foi?
- Achei que o dia tinha acabado sem que eu soubesse.
Hora de fazer as malas.
Podemos ir de barco até o fim do mundo; lá eu vou acreditar quando a mulher do rádio disser:
- Hoje teremos um dia lindo,
lá não vou me preocupar com os dias acabando enquanto eu ainda estou acordado, e minha vida passando por mim, por ruas de terra, bezerros, pipas, praças com bicicletas caídas e borboletas pousando no seu dedo, nós rodopiando até as estrelas, pegando carona numa brisa, numa pétala de rosa, dessas que pousam no teu rosto,
- Não se mexe,
senão as estrelas vão embora.
- Não se mexe que eu vou pegar as malas,
nós vamos viajar, não vou repetir, porque se o dia ouve, ele acaba e eu posso mudar de idéia, posso acreditar, por cansaço, por medo, por não ter escolha, na mulher do rádio
- Hoje teremos um dia lindo,
Você é linda, digo enquanto busca aquela pintinha no canto da sua boca, antes que o dia acabe, antes que o criado-mudo, o rádio, as malas, nossos filhos dormindo, as estrelas fosforescentes brilhando no teto do quarto.
Te garanto que lá não teremos pressa, nem medo, nem dor, nem terão hospitais, salas de espera, entrevistas de emprego, dúvidas, trabalho para levar para casa.
É tarde,
Vamos viajar até o fim do fundo.
Pode ser hoje? Vamos fazer as malas, brincar entre as estrelas, as pétalas no seu rosto, o campo nossa cama.
Hoje, que teremos um dia lindo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Andrezão,

mais um belo trabalho, por sinal. Uma rica descrição apaixonada. Diria que trata-se do amor platônico a dar sentido à vida (ou, tirar-lhe o sentido, numa visão cética). De qualquer modo, uma fábula amorosa.

Parabéns pelo texto, meu caro.

Abraços,

Bruno