quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Em algum dia de 2011

Fico ao redor de tantas flores que tenho certeza que apesar de tudo, também tenho cheiro de rosas, violetas, orquídeas; estou cercada por milhares de cores, de arranjos, que eu mesma me sinto um pequeno buquê, desses que se levam para a primeira namorada, para se comemorar a primeira semana de namoro, naquela época em que se comemora cada segundo e se torce para que eles sejam eternos. Tantas flores, até as árvores dão para ter flores ornadas em seus braços, não sei que flores são, gostaria muito de saber, especialmente daquelas vermelhas, que as pessoas pisam e escorregam e maldizem a sua existência, nessas horas eu me sinto muito como uma flor.
- uma, duas, três, quatro pétalas caídas no chão, 
E caem com uma leveza de bailarina, tocam o chão como se fossem um suspiro, tanto que ninguém nota, não há uma vassoura, uma pá para levá-las dali, enterrá-las num ligar digno; cada flor merece seu funeral.
- uma, duas, três, quatro pétalas, rodopiam, navegam no ar, sofrem com a mesma brisa que eu, a mesma brisa que levanta um pouco a minha saia, denuncia ao passantes algumas manchas negras na minha coxa, que nem sei como foram parar ali,
- uma, duas, três, quatro, manchas negras ao redor da minha perna, vindas de não sei onde; chegaram sem avisar e se hospedaram em mim, e se proliferam, logo mais estarão nos meus braços, no meu pescoço, ao redor dos meus olhos, sem que eu saiba de onde vieram, talvez sejam pedaços de mim que se desprenderam do meu corpo como as pétalas se desprendem do corpo da flor, e me deixaram com esses pontos negros ao redor de mim. Não toco porque sinto dor, e a dor me faz lembrar que ontem, ontem,
- uma, duas, três, quatro lembranças que merecem seu funeral, como as boas pétalas, pois eu mesma sou flor, já decidi. 
- Flor, você está no meu espaço, passa daí,
E eu me desloco deitada na palma da mão da brisa, e pouso noutro canto das floriculturas, longe das arvores que exibem essas flores vermelhas que eu não sei o nome, não tenho coragem de perguntar, não tenho coragem de respirar. Às vezes eu me viro espantada para onde estava antes, movida por um barulho seco, mole, como se um corpo tivesse caído do céu, mas são as flores vermelhas que quando caem das árvores imitam corpos, tenho vontade de chorar quando vejo tantos corpos estatelados no chão, esperando que alguém escorregue e maldigam sua existência.
- Flor, se é para chorar, fica em casa,
E a brisa levanta minha saia, novos pontos negros ao redor da minha perna, cirandando, multiplicando, até a noite, com certeza serão uma, duas, três, quatro novas marcas pelo meu corpo, marcas de dedo, dentes, dores que não ouso pensar, pois toda dor merece seu funeral.
Isso ou algo parecido dizia minha mãe, no interior de mim mesma, onde eu era feliz e valsava pelas tardes fazendo coxinhas, empadas, quibes, bolinhas de queijo para festinhas dos meninos da rua; os restos deixávamos com os indigentes das praças, em seus bancos, cama, banheiro. Jamais me esquecerei de seus sorrisos vazios, seus dentes eram como as pétalas que caíram e foram varridas pelo vento, e eu me sentia feliz vivendo assim, 
- uma, duas, três, quatro encomendas de salgadinho para o mês, 
E a renda era pouca, mas a felicidade tomava conta da cozinha e naquele tempo eu dava para cantar, e minha mãe com seu seco
- cala a boca, garota,
Ainda não era flor naquele tempo.
E seguido do cala a boca, 
- já disse que esse negócio de salgadinho não vai nos levar para lugar nenhum. Você devia arrumar suas coisas e ir para lá,
Eu mirava o horizonte com meus olhos ainda virgens do asfalto, das floriculturas, das flores mortes, das saias curtas, ainda inocente do que era lá, pouco me importava. Não queria ir, gostava das crianças me chamando 
- tia, 
E não flor, e não me mandando ir para lá.
- Que lá tem emprego decente, tem dinheiro. Lá você terá um carro, vestidos bonitos, namorados, muitos namorados, lindos namorados, que te darão presentes.
Diante de mim, mesmo forçando a visão, não conseguia imaginar que teria tudo isso, que o sonho da minha mãe se tornaria realidade.
Gostaria que ela me visse com um carro diferente a cada noite, às vezes até mais de um carro por noite. Tenho vestidos, que mal cobrem o que devem; namorados então, tenho mais homens do que carros, mas não são de dar presentes,
- uma, duas, três, quatro notas amassadas na cômoda,
com a bíblia dentro, intocada,
- uma, duas, três, quatro, novas marcas no rosto,
- uma, duas, três, quatro, noites sem que eu consiga sair do quarto, para que eu consiga comprar uma coxinha, que nem de longe se parecem com as que eu faziam e todos elogiavam.
- uma, duas, três, quatro estrelas começam a surgir num céu escarlate lindo, igual à cor do meu batom, do meu vestido, da minha calci....
Muitas horas de viagem carregando apenas meus documentos numa bolsa e meu livro de receitas, sem telefone, sem rostos conhecidos, sem alguém por quem chamar. Bati em algumas portas, sorri, ofereci meus serviços, tantos silêncios em resposta, e a massa dos salgados estragou, e o livro de receitas molhou inteiro com a chuva, que eu rezei para que me engolisse e não engoliu, apenas me deixou na porta de um botequim, com uma estátua de santa desse tamanho e corpo barbados apoiados nas mesas, copos pequenos, que eu vim a quebrar sem requerer depois, instantes antes de ser enxotada, aos berros, de tantos outros bares, até que conclui que não era bom dormir; sempre que dormia me levavam algo, e por pouco não me levaram a mim mesma numa noite sem lua para clarear aqueles dedos negros e sujos, que me roubaram tanto mais que bolsa, documentos e caderno de receitas. Ainda bem que ainda há gente boa neste mundo. 
Fiz amigas, que me deixam postada aqui na floricultura, contando as pétalas que caem no chão, as que são levadas em buques, as que são esquecidas e morrem sem sequer serem cheiradas por ninguém. Quando posso, levo as rosas mortas comigo e as enterro em qualquer canto de terra. Toda rosa merece um lindo funeral.
Mais um golpe de vento e atrás de mim as flores caem como corpos rendidos e meu coração se despedaça com a visão de suas pétalas esparramadas. Como pode uma flor ao cair no chão fazer o mesmo barulho que um corpo. Eu, quando cair, quero cair como a pétala daquelas rosas, que caem suavemente, como um suspiro. Vejo que já estou me repetindo; a rua está movimentada, mas ninguém quer saber de flores por hoje
- Flor, já disse, se é para chorar, fica em casa,
Nem tinha notado que dos meus olhos saíam essas gotinhas minúsculas, quase imperceptíveis, fracas e débeis; sempre torço para que essa corrente de vento as seque o quanto antes, afinal, ninguém gosta de flor que ao invés de cheirar chora.
- O dia tá uma merda, e você com essa cara não ajuda nada. Vou ser obrigada a falar de você pra ele hoje.
- uma, duas, três, quatro, pontadas no peito, e as pernas tremendo, as costelas doendo, eu não sei quem é ele (toda memória merece um funeral lindo, com coroa de flores brancas, vestido longo, coberto de pérolas) mas o corpo não esquece, tem memória própria, por isso sem que eu tivesse vontade, as costas se esticaram, os olhos se estreitaram, que importa se saia subiu muito mais do que devia ou se os lábios, contra toda minha vontade, contra toda minha alma, contra tudo que é puro e sincero e merece um funeral, apontam cegamente para o infinito e, numa voz que não é chama, chama pelos cães,
- psiu 
Que acordam, e se aproxima, um a um, salivando, observando a presa, que tremo, e peço para que a memória morra logo, morra antes que qualquer palavra, que qualquer pergunta, peço para que a memória apague tudo, apague lá, lá onde terei tudo que nunca terei e que minha mãe não se encoraja para vir conhecer, lá que nunca soube onde é, lá que não sei se é aqui, morra antes que eu seja obrigada a me despetalar em olhares e morrer lentamente, com o nojo das mulheres, com o espanto das crianças e os sonhos dos homens, antes que seja obrigada a morrer entreos dedos que me afundam as manchas negras da perna sem pedir licença ou boa noite, que morra tudo de uma vez antes que meus lábios me traiam e sussurrem 
- psiu.