quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Confusão

Eu não sou isso, não posso ser isso. Deus me livre andar assim, mover as mãos desse jeito. Nem vou falar mais nada para não acharem que essa é a minha voz; amanhã mesmo vou marcar uma consulta com algum médico, um daqueles que olham pra você, colocam aquela porcaria gelada no seu peito, pedem pra que abra a boca e diga ahhhhhhhhhh. Decerto que depois que eu fizer o ahhhhhhhhh ele vai perceber o mesmo que eu e dizer

- isso aí não é você. Provavelmente engoliu alguma coisa, um besouro talvez. Com que freqüência se exercita? Come verduras? Fique em repouso de tudo, de preferência deitado, sem pensar em nada. Logo vai ficar bom, pode confiar.

Sem dizer se vou deixar de ficar repetindo:

- Eu não sou isso, não sou aquilo.

Sem dizer se não vai mais estranhar o gosto por coisas estranhas como macarrão e salsicha com saque barato.

- Doutor, gostaria de perguntar uma coisa: nada nem ninguém me tira da cabeça que o réquiem de Mozart foi escrito para mim. Acho que ele sabia que naquela ruinha de merda, onde eu tenho meu quitinete, aqueles três pratos pra lavar há tanto tempo que a sujeira deve estar planejando mudança, as cadeiras com formatos de estranhos, que toda vez que eu sento estão quentes e há mensagens indecifráveis com um batom que vem sei lá de onde para mim. Ele sabia. O que acha doutor?

- Olha rapaz, vou lhe contar uma coisa, Hamlet foi escrito em minha homenagem, sabia? Tenho convicção que Shakespeare praticava alguma espécie de vodu ainda não descoberto pelo homem branco, mas que ele viu em algum sonho maluco, depois de bebedeiras regadas de calor do peito de alguma jovem marota. Portanto, acho perfeitamente possível que Mozart tenha escrito para você seu réquiem. O que devemos pensar é por que diabos ele não o terminou.

Deixo a sala do médico com tantas perguntas que nem tenho certeza se de fato me consultei ou se sonhei tudo isso. Minha cama ainda está quente e os lençóis muito bem dispostos contra o meu corpo, tudo está quieto dentro dos armários e as baratas estão diante da geladeira, esperando comida. Não sei como dizer a elas que não tem nada.

- Não tem nada aí. Ouviram? Ao invés de ficarem aí paradas poderia ter ido à padaria e trazido algo, um pão doce de banana, o resto dos copinhos de café mal lavados.

Nesses copinhos não se consegue beber com o mindinho erguido, uma vez vi uma mulher linda, olhos de mulher linda, boca de mulher linda, bebia o café maravilhosamente, com o dedinho erguido, coisas que as mulheres lindas sabem fazer como ninguém. Nada tão solitário como uma mulher linda: ouçam o que eu digo e não fiquem paradas, vão buscar algo para comer que hoje teremos somente suspiros e arrotos enfastiados. Faz um frio danado e não tenho condições de colocar o dedão para dentro da meia e deixar o buraco na sola do pé.

Faz tanto tempo que estamos assim que nem me lembro como viemos parar aqui; um belo dia estava perambulando pelas ruas da cidade, olhando as vitrines das lojas, sonhando tênis com molas, calças repletas de bolsos. Me interessavam mesmo as camisas com bolso, as jaquetas que se podia usar com a gola pra cima pra causar efeito nas mulheres lindas e seus dedos em riste após os almoços de passarinhos comedidos.

Teve um tempo em que eu comia tão bem. Fazia mais do que três refeições, como faço agora, se é que pão amanhecido, raspa de manteiga e café congelado são considerados refeições.

O Manoel que não me ouça reclamando que logo me põe para correr ou vem me falar de emprego:

Sempre tem uma dona precisando de alguém para consertar o chuveiro.

As goteiras que não cessam na cozinha e eu sem coragem de dizer que se eu soubesse consertar o chuveiro teria arrumado o meu.

se eu soubesse consertar um chuveiro teria arrumado o da dona e tinha comprado um pra mim. Aí talvez tivesse dinheiro para abrir uma loja, comprar uma caixa de doces de hortelã, dois por um real, numa promoção imperdível perto do terminal de ônibus, onde todo mundo de repente sente uma vontade incontrolável de comprar doce de menta, e fazer fortuna com isso.

Começo com doce da menta até chegar nos de melancia e banana. Há tempos que não vejo chicletes de banana. A criançada ia ficar doida ao ver um chiclete de banana, iam mascar aquilo o dia todo até virar uma pasta estranha e difícil de passar pela língua, de confundir com saliva, e vão engolir tudo, esquecidas que é chiclete e pode dar nó no estomago como diria minha vó; mas eles vão engolir porque não se cospe chiclete de banana, e vão pedir para mãe comprar mais. E eu vou aparecer nos programas de teve contando as minhas histórias, de viver entre paredes falantes, e como aprendi a falar o idioma das fadas.

Quando eu tinha luz no quarto as fadas rondavam a lâmpada para me agradar, como se fosse num baile animado,uma ciranda que eu não me continha e dançava com elas, que às vezes me mordiam e me beijavam, ferozes, ficava com dor dias e dias, me ardiam e inchavam os braços.

O Manoel me via deitado na calçada e falava

- Mas que é isso no teu braço?

E eu dizia com um sorriso que foi briga com fadas e ele me chamava de maluco varrido e passava álcool na ferida. Aquilo doía mais do que comer pão velho, mais do que tomar café gelado e não lembrar como que foi acabar a luz, de uma vez por todas. Como é que numa noite luzes multicoloridas invadiram minha sala, gritando e pisando tão forte no chão que achei que fosse ruir e fossemos todos cair na porcaria do inferno. Eles que se diziam policiais, me expulsaram da minha própria casa, dizendo que eu não podia morar ali, que o dono queria que eu saísse, e é óbvio que no susto não se consegue formar direito as palavras e dizer certinho o que aconteceu; na hora não consegui dizer que não tinha ninguém morando ali não que era só eu desde sempre, que também quem quisesse morar ali comigo podia aparecer, ia ficar até mais fácil para conseguir comida, bebida; alguém para cuidar da casa toda vez que eu vou ao médico. O médico da garganta.

- quando eu era novo eu fumava muito e não era tão divulgado que fazia mal, então todo mundo fumava, até os animais fumavam naquele tempo se não me engano, creio que vi uns cavalos fumando uma vez, parados na frente do bonde. Vocês sabiam que aqui mesmo nessa rua passava um bonde?

Eles me empurravam para fora, sem me deixar ver se ficou alguma coisa para trás, algum retrato de quando eu era forte, alto, novo, usava chapéu e bigode fino porque era disso que as mulheres gostavam. Acho que eles não acreditaram que me expulsaram num meio segundo e me vi parado, simplesmente parado na rua sozinho.

Foi aí que fiquei. Não muito, mas velho. Passei a trocar os nomes das pessoas, e quando eu aparecia na padaria pedindo alguma coisa para o Manoel ele dizia que Manoel o que o vagabundo.

- Poxa Manoel, sou eu!

Ele falava que Manoel o que, tá louco? E de tanto ele perguntar se eu tava louco, por uns dias comecei a desconfiar e passeia observar, como quem vai pintar um quadro, um Rembrandt e se confunde todo de ignorância. Eu mesmo, hoje em dia, me confundo trocando os médicos e entrando nas consultas dos outros. Até em consulta de mulher já entrei, e achei graça, e a enfermeira achou graça;, me ofereceu um café que eu tive que cuspir porque estava frio.

Eu que já fui algum professor de alguma coisa, falo umas coisas inteligentes às vezes; mas faz tempo, o quadro negro ainda era negro e não umas telas automáticas como se vê nas televisões, no jornal, na novela. As coisas mudam tão rapidamente que já não se consegue acompanhar nada, nem o sol. Tem dias que a gente transpira como se estivéssemos lá na África, que é quente a beça.

Quando estive lá se não fosse uma moça, que tinha um jeito para cuidar dos homens da vila, tinha morrido de sede, de carência, de tristeza. Aquela mulher salvou minhas noites, meus dias e quando eu vim embora ou a troquei por uma outra branquela que eu nem gostava - mas não era de dizer não -, me fez um trabalho de confundir as coisas. Eu trocava nome das duas a branquela me mandou de volta para o Brasil, mas isso faz tempo, eu nem morava no terminal de ônibus ainda, era ainda forte, ainda mascava chiclete com vigor, como um boi macho mastiga a grama, já viram boi macho mastigando a grama? Todo homem que se preze devia passar um dia com um boi macho, pra ver o que é ser homem de verdade.

Eu mascava chiclete e ficava apoiado no muro com esses fones de ouvido, ouvindo música que as mulheres hoje dançam, me achando esperto, inteligente, com uns trocados no bolso, até cigarro eu tinha, e às vezes fumava, e entre um cigarro e outro parava para ver as horas, e jogava a bituca no chão com jeito de galã e caia na noite pra ver as mulheres dançarem ao ritmo de música, que hoje nem é considerado música que não toca em lugar nenhum.

Me lembrei que eu, agora pouco, estava rindo porque nunca imaginei que musica morria, ainda bem que quando eu ensinava as meninas do coral a cantar eu não sabia disso, senão tinha desistido e as convencido a jogar amarelinha ou a brincar com bonecas invisíveis. Na minha vila tínhamos que improvisar brinquedo com latinhas, pedaços de pau, bolas murchas. Isso foi por pouco tempo, que minha mãe logo me levou no médico, que disse que eu era um gênio como nunca antes visto e ia ter um futuro brilhante descobrindo a cura de umas doenças, que iam matar a gente mais rápido que um tiro.

O médico sabia do que tava falando; me recordo da minha mãe fazendo o sinal da cruz, e eu fazendo o sinal da cruz, e o médico também fez e as crianças gordinhas no porta-retrato também fizeram; naquela época os médicos sabiam o que faziam e só de olhar pra gente podiam dizer que era gripe, pneumonia, manha.

Eu desatei a estudar a cura das doenças nas pernas das meninas da minha idade e estava sempre em forma de tanto correr dos irmãos delas. A vida era uma maravilha, não era doutor? Eu sei que eu não sou isso. Eu sei que não, que nem a minha voz eu reconheço, mas tenho certeza que tem cura, só não me diga que nunca mais vou poder mastigar meus chicletes de banana e tudo vai ficar bem.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Ai de mim!

Ai de mim!
Ai de mim!
O que poderia ter sido
E não sou.
Nada.
Nada.
Senão essa porta batida do coração
A janela do terceiro andar dos teus olhos.

Ai de mim!
A garganta fechada,
As visões sem direção,
As lágrimas desencontradas em nossas bocas,
O medo rondando nosso jardim.

Tudo o que queria,
E não sou.
As sombras na sala esperam o baralho,
Eu espero o corte
A dor e o sangue
Preso ao redor dos olhos
Da noite

Ai de mim!
Ai de mim!
Que danço no escuro
Que rio baixinho
Que perco a voz te chamando
Para sair de uma vez por todas
Dos meus sonhos
E cair nos meus braços

Cão

Às vezes não me identifico com nada
Que não seja aquele cachorro velho
Que de repente pára
Pensando na vida
Ou na morte.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Eu te espero

Eu te espero,
Ainda que demore,
Que chova e o vento destelhe as casas,
Que os cães e eu fiquemos sem abrigo.

Eu te espero,
Ainda que esteja cansada demais para um carinho,
Que te bastam a sopa, a cama, o sono atrasado de noites em claro.

Eu te espero,
Ainda que o tempo não passe,
Que sejam dez para as onze para sempre,

Ainda que ele decida passar rápido demais
a ponto de esquecer que nem sempre fui careca e barrigudo.

Eu te espero,
Ainda que sem assunto,
Ainda que no mundo toda notícia que sucedeu teu nascimento seja enfadonha,
Ainda que não tenha o futebol,
Ainda que subam os juros,
façam-se novas leis e festas,
Ainda que insistam nas tragédias,
e haja poesia por demais esquecida.

Ainda que seja primavera,
Eu te espero,
Porque sem você,
A vida é só uma tela em branco.

sábado, 20 de agosto de 2011

Felicidade é lamber os teus pés

Estou cansado,
(das chuvas de papel, dos arlequins de fumaça e das letras de miasma)
definitivamente,
estou cansado.

Lá está ela (minha assinatura), meio escondida, meio cismada, caindo pelos cantos sem saber como se portar na frente de todo mundo. De onde estou posso vê–la (minha assinatura) encostada nas beiradas, desconfiando se o vestido que sugeri lhe cai bem. Segura a coceira e a vontade de espirrar. Não me encara nos olhos. Decidiu que não fala mais comigo por um bom tempo (minha assinatura); tudo por conta de alguns disparates que disse – completamente movido pela emoção – antes que chegasse, ignorando que algumas línguas, sem demora, correriam por todo o salão para me denunciar aos teus ouvidos (minha assinatura). Fui até onde estava, me fiz de desentendido, sorri e agradeci sua presença com muita cerimônia, feito um dândi copiado dos filmes que via na casa da minha avó anos atrás e que ela fazia questão de dizer: aqueles sim, eram homens de verdade (minha assinatura).
Acabo de concluir meu primeiro livro sem sentir aquela ânsia que dizem parecer com a chegada do primeiro filho ou do apocalipse sorridente nas mãos fumegantes do sol. Fui paciente a ponto de reler cada palavra umas dez vezes, de me orgulhar de muita coisa que não sei como pari e fazer vista grossa para tantas outras que não se aproveitariam nem para redação escolar; não foram suprimidas por conta da redução no preço dos trezentos exemplares, pagos por mim antecipadamente.
Não vou mentir e dizer que foi fácil ou que as palavras escorreram de mim como suor, como lágrima de vinho no bico da garrafa diretamente para tua boca. Passei dias perdido entre linhas geometricamente perfeitas, justificadas apenas para mim e palavras, muitas palavras, que não caberiam em nenhum dicionário do mundo. As maiúsculas se postavam na frente do grupo, feito um executor aguardando as minúsculas terminarem de se enfileirar, homogêneas, cabisbaixas, cônscias da bala surda do ponto final e do despropósito de sua existência.
Aos poucos, – com certo regozijo, devo confessar – fui arquitetando genocídios, crimes passionais, inauditos arrependimentos e perdões injustificáveis, todos amoldados com sonhos e letras do meu próprio punho. Inventei nomes, pigmentação de olhos e dentes que preenchiam bocas em itálico; decerto que menti, criei tramas e as anunciei como se fossem verdade, fiz com que acreditassem em tudo, em tudo! Contudo, não agi sozinho. Fui orientado por uma voz que se apresentou como guia, como cúmplice, mas, quando perguntaram de onde vinha ou o que fazia aqui, se calou como tristeza de mulher.
Minha jornada teve início com o eco do porta–malas se fechando, assobiando tua canção nos meus tímpanos a viagem inteira; fiquei agoniado, pois as árvores encurvadas na calçada davam à cena um ar de despedida; te procurei no espelho retrovisor, achei que estaria acenando o lenço invisível da saudade e que talvez, escondesse com muito esforço lágrimas temerosas de uma futura solidão. Via o asfalto pela metade, carros pela metade, via que seu jardim começava a florescer, que há dias não recolhia o jornal do chão e que você não estava lá. Deve ter corrido para atender o telefone, justifiquei em seu favor.
– Se você acha que ficar numa cabana vai te ajudar, pode ir. Por mim tudo bem.
Insatisfeito, queria novamente sua opinião. Tinha sede das suas teorias, comparações, diagramas. Houve períodos em que, zelosa, chegou a usar meu mapa astral como bússola para dar seus pitacos. Mas depois passou a imitar a postura do seu psicanalista – que não saía da tua boca e da nossa mesa de jantar –: cruzava as pernas, apoiava o queixo nas mãos e espremia os olhos feito dois limões à guisa de transformar em suco seu parecer, suco de: se é o que te faz feliz, vá.
– Acho muito perigosa essa história de ser feliz.
Me defendia, cerrava os olhos e beijava seu ombro gelado enquanto ornava metáforas para homenagear tua paciência e teu ronco de cocote francesa. Uma estranha sensação do psicanalista sentado na cabeceira, dividindo o bloco de anotações amarelado entre transcrições de nossas conversas e desenhos do seu corpo nu, me perturbava o sono.
Movido pelo barulho dum lápis imaginário pincelando teu corpo desnudo da camisola de seda, decidi ficar por uns tempos na cabana do meu avô, bem no interior da cidade, para concluir algumas frases que faltavam no meu livro e transpirar raciocínios que julgava brilhantes, porém ao seu lado ficavam tímidos e se negavam a sobressair. Aqui tenho distrações demais: suas coxas e seios lunares, as contas escondidas debaixo do capacho escrito welcome da porta da rua, as tardes fumando cigarros de névoa, esfumaçando a minha imaginação. Talvez seja melhor, talvez seja melhor ir para o interior.
– Vá, querido. Eu até pegaria teu mapa astral para confirmar algumas coisas, acontece que tirei ele da gaveta de cuecas e coloquei não sei onde.
A cabana cheirava a merda de cavalo; o único móvel servia de café da manhã, almoço e janta para traças e cupins; a cama se resumia a um estrado que só de encostar rangia de dor.
Logo nos primeiros dias senti o sangue correr nas minhas veias de morto–vivo em estado de graça, exibi para um espelho rachado os vãos entre os dentes de uma boa ideia quando a tinha. Cheguei inclusive a acostumar–me com a visão destes dentes amarelos por culpa do café sem açúcar e do cigarro. Isso num tempo em que achava que não conseguiria escrever mais nada.
Bastou que me afastasse das calotas machucadas de tinta, do telefone e do computador para perceber que minha vida se resumia a reticências enfeitando páginas do jornal, buscas por Modiglianis nos espaços públicos e dedos em riste da minha mulher, me lembrando que há uma vida por trás disso, desse negócio que não arrisco adjetivar e que chamam de literatura.
Toda vez que tocávamos nessa nota um diapasão rompia e eu orquestrava uma retórica em dó maior, balançando as mãos para dissolver seus pensamentos no ar, para afastar qualquer possibilidade congruente de defesa da minha parte; balançava as mãos como quem espanta mosquitos e libélulas recém–nascidas, só para não dizer que sabia que a literatura é um sonho sem voz, sem imagem, que não tem sequer talento para existir sozinha. A literatura é um gato cego e banguela que não se consegue alimentar – pois somos nós, sempre, que sentimos sua fome. E o pior, meu amor, é que eu sei, eu sinto no fundo da minha alma que esse gato títere desdenha minha atenção, meu carinho, minhas noites em claro. Por isso insisto em negar peremptoriamente minhas quedas abismais com doses homeopáticas – três vezes ao dia – de absinto, vinho barato e saquê; não quero ouvi–lo ronronar pelos cantos ao ver que padeço de uma fome que não é minha.
Conto com teus afagos espirituais quando voltar dessa sensação de sonho in albis, meu amor. Você não respondeu e, quando pensei em repetir tudo desde o começo fui atingido por uma seta feita daquelas libélulas recém–nascidas que descrevi antes e só servem para dançar jazz no meu peito retórico e fatigado de adjetivações.
Se é o que te faz feliz, vá. Se é o que te faz feliz, vá.
Pelas manhãs, emocionado com insetos que morriam no chão do meu quarto, num ato contínuo e inconsciente, como aquele em que se abre a boca para deixar o vômito romper a barreira dos lábios, meu lápis virou um extintor de serpentina e, sei lá por que o saquê ficou com gosto de suco de laranja, as páginas se consumiam por si próprias e o tempo voou sequestrado no bico de um canarinho.
Na minha cabeça, você, minha querida, é um anjo caído que me ergue ao vácuo dos céus oxidados, em oferenda ao Deus dos que sangram perpetuamente numa hemorragia impossível de estancar. Eu abro os braços em redenção porque sei que logo eu também terei um ponto final para me emudecer; logo, eu também serei apenas uma voz que se calará no momento oportuno, que saberá encontrar o caminho de volta às pernas escancaradas, à placenta, aos pelos, ao choro que sucede o primeiro tapa da vida, à primeira infância e que depois paulatinamente sufocará pelas cobranças, pelos chefes, pelas feijoadas e pastéis de queijo até morrer de sono num domingo ensolarado de Páscoa. Abro os braços porque gosto do barulho das mãos que se esbofeteiam, das folhas que se amassam e caem fora do lixo; gosto dos serafins baforando cachimbos de bola de sabão enquanto pinto minha alma com nanquim nas bordas do meu caderno infinito.
O que você está fazendo, perguntam os curiosos. Estou brincando de ser Nassar. Em coro vão dizer que não, não posso ser Nassar; não posso ser Dickens, Dostoievski ou Drummond. Não posso ser a letra D ou nenhuma outra. Não posso ser o sonho e o espírito desencarnado da solidão responsável pela alvura das paredes dessa cabana de esquecimento, não posso ser a inspiração e a transpiração, não posso ser nada além da insônia e do cheiro insistente de merda dos cavalos que nunca passaram por aqui. Se é o que te faz feliz...
Diz, o que é mesmo que você está fazendo? perguntam olhos injetados de curiosidade. Eu quero criar uma pessoa que come água como se fosse bolo de fubá, que toma saquê com gosto de suco de laranja; criar a possibilidade de se apreciar uma xícara de café sem açúcar e quero ao meu redor pessoas tenras, que se abraçam com sinceridade e acham graça quando digo que Macunaíma c´est moi...
Por muitos dias me deitei somente para dialogar com a vista alva dos olhos cerrados. Não consegui dormir um segundo sequer, ora por causa do ranger da cama – que se incomodava a cada batida do meu coração fraco –, ora por conta dos latidos insones. Rompi horas escrevendo umas poucas frases na minha cabeça, torcendo para que você as achasse brilhantes. Perdido nas entrelinhas de um poema inventado percebi que só dormiria se pensasse em você (ainda hoje pensar em você é como uma droga que aguça meus sentidos, amolece minha razão e rouba meu discernimento): principiei pelo teu perfume de anis, segui pelo lilás das suas unhas e me embarafustei pelos teus cabelos desgrenhados, rolei até teu umbigo, onde, num movimento brusco de tosse, fui jogado de volta para o lençol.
Entrei num estado torpe de sonolência pouco depois de rememorar nosso casamento. Lembrei dos dias em que adquiri o hábito de deixar no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, textos meus, ou trechos de livros que julgava bonitos, ou mesmo rimas das músicas que ouvia você cantando baixinho no chuveiro, trocando as letras, confundindo as melodias. Achava graça quando seus amigos diziam que meu talento se resumia a copiar frases de impacto e lamber teus pés. Sempre esperei que dissesse algo em defesa do meu gosto poético ou preferência por pés. Você bebericava sua piña colada e pedia para que falássemos doutra coisa. Paguei, seguindo conselhos de sua irmã, um revisor para consertar meus textos. Ao lê–los revisados não os reconhecia, principalmente aqueles que o revisor fazia questão de assinar na condição de autor e enviar escondido para você. Rapidamente acabaram meus textos e meu dinheiro; decidi revisar os parcos textos que restaram sozinho e mandá–los para que lesse escondida, como fazia com os outros.
Assistindo ao mesmo filme todas as noites e recontando nossa história pelas manhãs apliquei tudo o que aprendi de edição e revisão de textos: comecei por revisar meu cheiro, segui por minha cueca, continuei por todas as minhas roupas, fotos três por quarto perdidas na carteira; revisei minha identidade e meus nomes, a chave do carro, as gravatas suspensas na porta do armário. Rasurei o meu passado e o meu presente, mudei meu tempo verbal para o futuro do indicativo; entre parênteses deixei abismos a serem preenchidos por verdades, inventadas, verdades mesmo assim. Apaguei tua risada das beiradas do que restava da minha folha em branco e rabisquei o endereço da nossa casa; troquei o número de nosso telefone por uma garganta seca e nosso cachorro por um bem–te–vi. Só aquele medo de ser feliz que não soube onde colocar: deixei-o espalhado por aí.
Aprendi que escrevia melhor tduo troto e que talevz foses uam boa idiea dexair mues tetxos em exopçisão na slaa do psinacalsita da mihna muhler, para que ele diag que é tduo atre plea arte, plea atre, plaa morte. A arte é a rdeneção da lama agrarada aos ossos. As lteras dnaaçm bolero melhor que as borboletas.
N0t4 m3nt41, 45 l3tr4s d4nç4m m3lh0r qu3 4s b0rb0l3t4s.
No rodapé fiz constar minha última nota: ainda temo essa história de ser feliz, especialmente na iminência do teu sorriso.
Amanhã voltarei; entregarei o manuscrito pra revisora, me livrarei de toda essa bagagem que encurva minhas costas e entrava minhas pernas. Voltarei a sujar a língua com a graxa dos teus sapatos, a desdenhar os arranha–céus feitos de nuvem e pássaros de grafite 0.5, pra descobrir de uma vez por todas, se é perigoso esse negócio de ser feliz. Você me dará tua espádua congelada a qual beijarei enquanto penso em trechos para copiar e deixar assim que amanhecer no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, misturado com páginas e mais páginas do fruto do meu refúgio e desenhos insones, feitos num bloco amarelo e sem linhas, do teu corpo nu.

domingo, 7 de agosto de 2011

Cântico Noturno - Ricardo Bruch

Há um grito que saí dos ventos e bagunça meus cabelos, o mesmo que anuncia o fim do mundo. É fugindo dele que, todo dia, à mesma hora, vou para a ponte em busca de silêncio.

Eram duas ou três horas da manhã, o som dos carros embaralhava distâncias, ora soavam perto, ora distantes demais. Não havia luz. As vigas de concreto, o asfalto esburacado eram identificados graças aos carros que passavam e seus faróis confirmavam. Havia uma silhueta exatamente no lugar onde eu deveria estar:

- Desce daí seu maluco!

A princípio achei que gritaram para mim, depois entendi que era para a figura cuja cabeça quase tocava os joelhos, bem na beirada da minha ponte, que é como a porta de entrada para o rio: meu cemitério de lágrimas particular.

Toda noite esse rio tem como pano de fundo o mesmo horizonte apagado. A lua foi engolida por nuvens carregadas de tristeza.

Na verdade, pouco me importa a paisagem ou o eco dos motoristas, quero apenas meu silêncio.

Aproximei-me lentamente do meu lugar e descobri, graças ao persistente movimento dos carros e seus faróis, que se tratava de uma mulher; tanto faz se fosse alta ou baixa, morena ou loira. Prostrados todos somos iguais. Ao seu lado pude notar: chorava feito criança. Pequenas, as mãos mal cobriam o rosto, babava soluços pelas bordas da boca; senti uma vontade irresistível de acabar com todo sofrimento. E, alheio aos gritos dos motoristas, fiquei tão perto dela que quase nos tocamos. Ela se moveu apenas para arrancar algo do dedo esquerdo. Arremessou com tanta força para longe que por pouco não perdeu o equilíbrio e caiu definitivamente no rio.

Gritei de susto, e o pranto deu vazão a um pequeno riso, que, pelo tom, também parecia ser de criança.

Permanecia calado, simulando uma ausência que julgava necessária.

- Desce daí seu maluco!

Observava as sacolas plásticas nadando rumo a lugar nenhum; emaranhavam-se feito amantes dejetos e espuma.

Para minha surpresa algo gelado envolveu minha mão Eram seus os dedos:

- Me deixa chorar em paz.

Fiquei quieto, observando os ruídos da cidade ao nosso redor. Observava o rio com suas veias abertas, sangrando sonhos, lágrimas, geladeiras. Nesta hemorragia, corpos amorfos treinavam natação artística ao som do pranto dela, nos chamando.

- Desce daí seu maluco!

Apertei seus dedos com força, para que soubesse que continuava ali, por ela e, se pudesse, choraria também. Acontece que seu choro inibe o meu, abafa minha voz.

Pensei em pedir que fosse embora; se quiser pode deixar seus murmúrios e tristezas comigo, mas não volte mais aqui, vá embora, para sempre.

- Me deixa chorar em paz.

Ainda mais forte apertei seus dedos mortos, ela gemeu quando tentei soltá-los, ela, com mais força ainda do que eu havia apertado, me segurou.

Na tela negra do céu, as nuvens se multiplicavam; pensava por que é que lá longe as estrelas brilham e aqui não. Talvez, se eu me sentasse noutro lugar, noutra ponte, onde a lua não fugisse, nem as pessoas gritassem tanto, as coisas fossem diferentes.

Quem sabe eu tivesse até uma mulher que me amasse, que assistisse a novela enquanto me esperava para o jantar, vestida com uma camisola cor de rosa, e o corpo todo perfumado de pêssego, ou morango com champanhe.

Aí então eu poderia dizer:

- Com licença, que vou ver minha mulher,

e sair sem dar bola para o chefe.

- Com licença, que vou ver minha mulher,

para as pessoas da rua.

- Com licença, que vou ver minha mulher,

para estranhos, dentro do metrô.

Quem me dera poder dizer agora:

- Com licença, que vou ver minha mulher.

Logo vai ser manhã de novo, e o céu vai voltar a ser azul, pensei. Quis dizer que a felicidade passa, a tristeza passa, a sorte, o azar, tudo passa, fique calma, concluí:

- Um dia vai sarar.

E quando isso acontecer você vai se arrepender de ter enterrado suas lágrimas no meu cemitério, de ter segurado minhas mãos frias ou ter jogado seja lá o que foi que você jogou fora.

- Um dia vai sarar.

Ela respondeu:

- Até daqui a pouco.

Largou minha mão, sem violência, como um carinho, um afago, e projetou o corpo para frente, como se fosse alçar vôo, mas caiu pesada como âncora, profundamente, dentro do rio.

Olhei para baixo, bolhas apareciam na superfície e um cheiro renovado de merda tomou conta do ar.

- Desce daí seu maluco!

Não havia corpo algum.

- Vai sarar...

Deveria me jogar também? Deveria tentar salvá-la? Valeria a pena buscar um corpo sem nome, sem calor, sem vida? Um corpo que nunca me deixaria dizer:

- Com licença, que vou ver minha mulher.

É melhor fugir, correr, antes que alguém apareça.

Vou fingir que não conheço esse lugar, que nunca estive aqui, que não vi, nem ouvi:

- Me deixa chorar em paz.

É melhor ir embora, antes que alguém diga que fui eu quem jogou aquela pobre mulher no rio.

- Que vontade de ir para casa.

Desço da ponte, e piso firmemente com os dois pés no chão, um alívio me rasga dos pés à cabeça.

Faróis desvendam meu rosto pálido, contorcido por uma vontade louca de vomitar.

- Desce daí seu maluco!

A luz dos faróis invade impiedosamente meus olhos quando me volto para a avenida.

- Vai sarar.

Protejo-me, tentando caminhar com segurança, penso no que ela quis dizer com:

- Até daqui a pouco.

Que vontade de nunca ter estado aqui, de não ter conhecido essa mulher, de ter deixado que ela tocasse minhas mãos com seus dedos, de nunca ter dito:

- Vai sarar.

Desejei que nunca tivesse dirigido suas palavras a mim.

- Até daqui a pouco.

Os carros mantêm sua toada.

- Desce daí seu maluco!

Caminho cuidadosamente para não tropeçar em nada, não pisar em falso e cair no meio da pista.

Não consigo deixar de pensar naquela mulher, que nem sei ao certo se era de verdade ou um sonho.

- Que vontade de ir pra casa.

Os carros passam cada vez mais enlouquecidos, fugindo do amanhecer. A massa de vômito quase rompendo a barreira dos dentes e minha mão cada vez mais gelada.

- Vai sarar.

Dou um passo para frente, e nada, mais outro; cego, por culpa dos carros, sigo cambaleante.

- Com licença, que vou ver minha mulher.

Até que uma buzina penetra meu estomago e, junto à sinfonia, o grito esganiçado dos pneus; sinto meu corpo pesado, o sangue se perdendo.

- Que vontade de ir para casa.

Novas buzinas e passos, muitos passos; um calor invade meu rosto, novas vozes, barulho de pés, meu corpo amolecendo.

- Que vontade de ir para casa.

Meu corpo como que desossado, igual ao dos frangos espremidos nas geladeiras do supermercado.

Uma a uma, paulatinamente, as vozes se calam, pondo fim ao coral; sinto meu corpo coberto por sombras.

- Que vontade de ir pra casa.

Acima de todos, riscos de sol ameaçam iluminar a pista bem no ponto onde mãos se unem em sinal de prece, para que a última voz conclua, sem forças, solitária:

- Meu Deus, o que foi que eu fiz?

4:00 pm

Maria era pura satisfação quando entrou em casa, jogou a bolsa de qualquer jeito na cadeira, e tropeçou no pé da mesa. Por pouco não caiu de cabeça no sofá. Que festa maravilhosa, disse com dificuldades para acender o cigarro. Quando sai com os amigos de colégio fica assim, os olhos emanando essa luz vulcânica – eles sempre brilharam muito. Certamente falou com todo mundo, contou sua vida inteira em segundos e gargalhou até ficar vermelha por não conseguir respirar direito; gargalhou mesmo sem ouvir o que diziam os comentários. Em cada riso ouvia-se um resquício do seu, as pessoas comentavam o brilho dos seus olhos, e isso se prolongava até o final da festa. Ainda bem que não fui, eu digo, odeio os pés cansados de ficar em pé, meu estomago do avesso com o cheiro do cigarro, hálitos de bebida misturada com salgadinhos de ricota. Ainda bem que apenas fui te buscar, eu digo.

Maria não me dá bola. Ela gosta das luzes, do movimento, mãos apoiadas no cotovelo e a fumaça do cigarro a invadir os olhos de quem está ao lado; gosta dos pés atabalhoados, rostos amorfos por distantes lembranças, se apalpando sem pudor. Apaga isso, eu pedia, ela assoprava para o teto, agia como se todos os dias da sua vida fossem assim, regados à fumaça e vinho barato.

São quase três horas, vão a doer minhas costas, e eu mal comecei a escrever, eles mal chegaram em casa e têm tanta coisa para conversar da festa, da menina que engordou, outra que emagreceu e namora um homem com idade para ser seu pai. São três horas, em ponto. Eu sei por que minhas pálpebras só pesam assim às três horas.

Ainda não decidi como ele dirá que não suporta o estado no qual ela volta dessas festas, não gosta dos seus amigos desordeiros, e tanto faz se são os amigos que a acompanham nas mostras de arte ou reuniões, para ler poemas de Rimbaud; entoam em uníssono e braços em riste, como se fosse a coisa mais tocada no rádio ou hino de time de futebol. Como dirá que gosta do sofá, da televisão muda, de como a camisa azul desbotada fica bem no corpo dela e de como ela ri baixinho quando contam as estrelas na varanda, igual aos filmes que a fazem chorar.

São três horas, faz tempo que você está dormindo. Sei pelos movimentos involuntários do teu braço, que bateu em meu caderno, me fez errar e cortar a palavra “EXERCÍCIO” escrita no alto da folha; cortei também a parte na qual Maria repete: adoro essas festas, rindo e tirando o cabelo desordenado do rosto, enquanto ziguezagueia pelas as paredes do corredor; acompanho-a como um cão de guarda até o quarto, apagando as luzes que, por onde quer que passasse fazia questão de acender; perguntei se queria tomar banho. É tarde, posso fazer isso amanhã, ela disse.

Você é um idiota, ela diz, não sorriu uma única vez hoje, e eu tinha dito que você tinha senso de humor. Sento na cama, tiro meus sapatos, ela acende mais um cigarro. Seu corpo tão próximo do meu, mas o espírito continua na festa, com aquela gente que não dorme e perde horas admirando rabiscos acidentais de tinta colorida numa tela muito maior do que o necessário, falando de como beltrano vive bem apenas pintando seus nus impressionistas e, principalmente, de como eu era um idiota sem senso de humor.

- Você não vai dormir?

Se virou e puxou o lençol para a altura dos ombros, cobriu os braços nus, lisos, quentes, só para me deixar pensando como seria bom apagar a luz e deitar ao seu lado, me entorpecer no cheiro doce do teu xampu, esquentar minhas mãos nos teus braços nus, lisos, quentes, mas fico aqui, com as costas doendo, às três da manhã, escrevendo braços nus, lisos, quentes como se escrever fosse o mesmo que sentir, como se escrever fosse o mesmo que viver.

Você é um idiota.

Olhando seus braços, nus, lisos quentes, me contive para não arrancar sua blusa e sua calça, arremessar o maldito cigarro no chão, beijar seu pescoço, te render e fazer rir, assoprando na sua barriga, igual se assopra na barriga de um bebê, e depois beijar todo seu braço nu, liso, quente, fazer você cair da cama, rolar no carpete, implorar pelo amor de Deus, pára, por favor, e brincar com teus cabelos nos intervalos, babando todo seu pescoço, para quando se acalmasse, voltar a assoprar suas costelas, suas costas e você rir, se sacudindo inteira, pelo amor de Deus, pára, por favor, só pra eu ficar feliz ao ouvir seu riso conhecido, seu riso que é meu. São três horas da manhã e você fuma de costas para mim.

O lençol se move convidativo. Encaro a folha branca do caderno, não gostaria de parar agora. Posso deixar para terminar amanhã; faz tempo que não são três horas, e outra, daqui a pouco o texto vai ficar desordenado, vou perder o fio da meada, me embaralhar entre nomes, falas, as palavras vão se atrapalhar, até não ter certeza se estou de olhos abertos ou não. Minhas costas doem. A caneta fincada feito estaca num ponto final suplica para eu continuar.

Depois de apagado o cigarro você disse amor, apaga a luz, e vem dormir vai. Disse tirando a calça, deixando-a no chão, entre as cinzas da madrugada que corre em suas veias. Se inclinou para pegar a blusa do pijama caída ao pé da cama; meu coração deu para bater mais rápido, vi sua calcinha cor de rosa, suas pernas nuas tão próximas de mim, incitando minhas mãos. Por que é que você está me olhando assim? Nem vem, estou cansada, você disse; tirei minha calça sem desviar os olhos do seu corpo escorregando para debaixo das cobertas. Improvisou um bocejo, um sono que não estava na ponta dos seus olhos há segundos atrás.

- Amor, apaga a luz e vem dormir, vai.

Penso numa saída, as coisas se misturam. Como continuar? Minha cabeça pende para os lados, a caneta cai no chão, faz barulho, incomoda teu sono. Peço inaudíveis desculpas. O peso das minhas pálpebras totaliza uma tonelada; por quanto tempo vou agüentar? São quase quatro horas e, no papel, frases que mal consigo acompanhar, amor apaga essa luz por que é que você está e vem dormir, você é um idiota estou cansada por que é que me olhando assim, nem vem estou cansada, Amor apaga e nem vem madrugada.

Esfrego os olhos e, sem saber direito o que estou fazendo, avanço em seu corpo de sombra, beijo seu pescoço, brinco com a orelha, você permanece imóvel debaixo do lençol, aperto seus braços nus, lisos, quentes, você murmura não, vamos dormir, chega, retiro lentamente o lençol, esfrego minha cabeça no seu peito, aproximo minha boca da sua barriga e assopro com toda a força. Você pula, estremece, resiste, grita, ri feito doida, pelo amor de Deus, pára, por favor, e eu assopro sua costela, treme seu corpo inteiro, e você berra, se contorce na cama, tenta afastar minha cabeça, puxa meus cabelos, pelo amor de Deus, pára, Alberto.

Alberto?

Al-ber-to?

Alberto?

Quem diabos é Alberto?

A luz do abajur me atrapalha, vou desligá-lo de uma vez e continuar amanhã, na varanda, debaixo do sol, talvez depois do café, das torradas, de você perguntar: dormiu bem? Você foi dormir tarde ontem.

São quase quatro horas da manhã. O lençol continua em movimento, sua respiração está distante, deve estar perdida no tempo, ao redor da lua, me observando pela janela; sou contaminado pelo seu cansaço, sono justo e puro; minhas pálpebras se recusam a se abrir. Quanto tempo posso agüentar?

São quase quatro horas, as coisas devem chegar ao fim, não por mim, por ele, se perguntando quem diabos é Alberto, ergue a mão e prepara para atingi-la num golpe cego e seco. Maria se protege, cai no chão, engole o grito por socorro; o ponteiro invisível dos minutos pesa tanto quanto minhas pálpebras. Resta a impressão que o tempo parou dentro do quarto.

- Amor, apaga a luz e vem dormir, vai

Pulei da cama e me joguei em sua direção. Meus pés estão dormentes, suas coxas tão lindas, quem diabos é Alberto, o sono começa a me aniquilar, um cansaço final, seus braços nus, lisos, quentes, vontade de agarrar seu pescoço, assoprar na tua barriga, o lençol se move lentamente, o ponteiro pesa mais e mais e ela sem saber quem é Alberto, sem saber se terá que pegar suas roupas do chão, esperar o elevador sozinha no corredor. Eu te encaro na penumbra do quarto, separados pela cama; ofegante, minha boca cheia de perguntas e a tua cheia de silêncios, quem diabos é Alberto? Seus olhos reluzentes de medo, feito os de um cachorro assustado ante o dono com um pedaço de pau na mão. Seus olhos sempre brilharam demais. Quem diabos é Alberto? Ela sem saber de onde saiu aquilo. O silêncio me afunda na cama, no cansaço, a caneta pula dos meus dedos e volta para o chão, a claridade incômoda do abajur, o ponteiro acaba de marcar quatro horas, o peso insuportável das pálpebras às quatro horas, um peso que não tenho mais forças ou condições para resistir.

domingo, 26 de junho de 2011

A solidão do mundo

A solidão do mundo se esconde nas dobras do meu braço,
A solidão do mundo se esconde nas dobras do meu braço,
A solidão do mundo se esconde nas dobras do meu braço.

Quero queimar todos os meus livros com o fogo da tua boca.
E de suas cinzas fazer um para para navegar,
e com seus personagens desfrutar um banquete derradeiro
com a lua milanesa e terra frita.

Os beats não irão embora nunca, querem conhecer Rimbaud da prateleira de baixo enquanto é tempo.
Os franceses não fazem nada para estancar as labaredas, apenas riem de mim,
com seus dedos me pregando na parede.
Os poetas seguem em fila com suas obras completas dentro de si.

Depois me livrarei dos discos, da guitarra, do violão, dos gringos, do Chico,
vou despojar de mim mesmo e correr o risco da nudez,
correr o risco da mudez,
que todas as as vozes pregadas nos edifícios,
que todos os balanços que se movem sem explicação,
que todos os arrepios, todos os calafrios,
que todos os suspiros de amor
são meus. Sou eu.

A solidão do mundo se esconde nas dobras do meu braço.
A solidão do mundo
se esconde
nas dobras
do meu braço.

R.B.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Para um filhote cheio de vida

Eu quero me afogar nos teus braços,
me abalroar nas tuas costas,
despencar da tua nuca,
para todas as tuas cartas chorarem de saudade e amor:

E agora? O que será de mim?

Lá na rua um filhote grita porque não quer morrer.
Não tem muitos meses de vida, é marrom, é branco, é negro, é abandono
e não quer morrer.

E agora? O que será de mim?

O telefone é uma ponte invisível de distâncias,
as manchas do céu avisam que ele não está de brincadeira,
nem os gatos na rua, nem as calçadas, nem as palavras adormecidas.

A saudade que eu sinto é um filhote,
que grita porque não quer morrer.

R.B.

Samba da angústia

Noel Rosa batuca um samba em marcha lenta na varanda da minha cabeça,
escrevo juras, promessas, sonetos nas coxas do tempo, que não tem fim.

Queria calar como cala a calmaria nos lábios das flores.
Espero um sinal que não chega tarde por que não chega nunca.

Noel Rosa batuca na mesa de ferro da minha garganta,
desenho teu rosto nas palavras presas no trânsito,
direita, esquerda,
buzinas de girassóis e jardins fantásticos no centro das avenidas,
direita, esquerda,
alheio ao tempo, ao sinal, ao samba, aos girassóis, aos meus restos,
ao seu rosto que não chega tarde,
que não tem fim,
que não chega nunca.

R.B.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Fica Bem

Os corredores do meu peito estão desertos, pilastras, bustos, carpetes das nossas fotografias, para a lente míope da câmera sem foco.
Não tenho coragem mais de me levantar, nem para pegar um copo d´água na cozinho; pode ser que eu tope com algo seu, você em forma de qualquer coisa, sei lá se antes de sair deu para se despetalar inteira, trocando todos os cheiros por seus cheiros, todos os cantos por seu canto, suave, em dó menor.
Os livros, você levou, as dedicatórias e as juras espatifam-se no chão da sala. Penso em ruas, rezas, recados derradeiros na caixa de remédios, mas lá só tem um Fica bem qualquer, daqueles que se diz depois de mil despedidas, mil lágrimas batidas, mil cupidos desenganados sem saber o que dizer na janela do meu quarto.
Fica bem que foi engano do sol, seu astro reluzente queimando outros lençóis, seus pés pelas manhãs guiados para outros chinelos, outras camisas.
Os corredores do meu peito, se quiser, são para você dançar com aquelas pantufas que você adora.
Os corredores do meu, são milhões de avenidas para você cruzar e dormir entediada com a paisagem, os mesmos lamentos rolando, rolando, rolando na paciência do rádio.
Estou com aquela camiseta que usava para dormir. Me perguntava fez ou outra, manhosa Fica bem?
Fica bem
E por isso não movo, não arredo o coração, não tenho gana de sair e dar com sei lá o que de você nos corredores do meu peito e ressuscitar uma sombra de beijo, com goticulas de saliva e um pequeno recado:
Fica bem.

R.B.

De tudo & Tanto


De tanto vento fez-se o tempo,
de tanto tempo teu corpo onírico,
encontro o momento mágico milagre em tuas mãos.
Ponta feroz do cílios dos cometas, nossos peitos fundidos num arrepio de gozo.

De tanta luz fez-se o calor,
os passos passam juntos,
deixamos nossas pegadas nas paredes dos hotéis de luxo
no centro da nossa cidade adormecida.

De tudo quanto eu tento,
os pés de cama suspiram em alheiamento,
teus lábios êxtase inteiro,
nossa casa, nossa caverna, esconderijo das preces contidas, recortes de jornal.

Teu hálito embriagando a janela,
as costas das minhas coxas agora fundidas nas suas.

De tanto amor fez-se o
mmmmmmmmmmmmmm.

Somos um pássaro voando sem destino na gaiola do universo.

R.B.
19.06.2011

Quintal



Os teus dedos fazem melodia, tocam música na curva das costas da noite; as pelúcias reclamam do frio e do sono, apoio meu queixo na sua coxa pra te ver dormir: sonos interrompidos pela curiosidade dos raios de sol, que não respeitam mais os limites das tuas pernas. Tosses, tosses, o retorno.
Tosses, tosses, o retorno.
O mundo cronometrando os sinais da sala de estar das varandas dos bocejos, das frases longas, que não caminham na ponta da tua lingua e somem, enquanto pequenas palavras
amor
não dormem nunca.
Fantasmas balançam meu berço de nuvem, mas apenas finjo dormir. Penso em como poemizar nossa história, surrealizar nossos feitos, tatuar teu cheiro e fazer com que nossos medos se aquietem num canto qualquer do quintal.

R.B.
madrugada de 18 de junho de 2011

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Trancado


Eu sou o tirano da minha voz escondida nas gavetas da cômoda, meus movimentos fórmulas milimetricamente mensuradas por um Deus sonolento, bocejamos juntos na ponta do abismo depois de um porre de vinho chileno, esperando, esperando. Vai você primeiro, e desconfiava dos toques, dos risos elétricos de desespero e ansiedade. Vai você primeiro, que eu tenho um mundo e filhos para cuidar. Na hora eu nem pensei em perguntar E não faço parte desse mundo, desses filhos, na hora nem pensei em fincar os pés no chão feito gato. Na hora nem pensei e me abismei como quem acha que sabe voar, braços alegremente abertos em sorriso. Aquele sonho de termos um minuto inteiro juntos, das contas pregadas na geladeira, das juras magnéticas indecifráveis, letras de plástico, tudo virou nuvem de um grito tirânico, voz escondida nas gavetas da cômoda, gavetas que eu não tenho coragem e nem posso abrir. Tranquei-as e esqueci as lágrimas dentro.

R.B

Quiromancia - Para Mariana


Na palma da tua mão me encontrei;
vida, coração, fortuna, amor.

Numa lombada funda tropecei e cai na linha da sua vida,
aprendi a ler, escrever e filosofar teu corpo.

Coração, Sol distante, pra lá dos antebraços, montanhas e nuvens de sorrisos intocáveis.

Ao topar com a linha da fortuna guardei meus poemas,
minhas visões na caixa dourada do inominado,
guardei tudo o que tenho, tive e terei,
para na linha do amor
me perder completamente,
para sempre.

R.B.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Folia


Os cachorros dos meus cinco anos brincam com a bola do tempo na porta do meu quarto, minhas professoras ululuam com tocos de giz, apagadores carecas e jalecos manchados pelos quatro cantos casa.
Ouço o estalar do chão, o chiado das unhas pintando o taco de madeira nova, os tombos, o latidos contidos para não me incomodar. Sinto o roçar dos dentes brancos, o castanho dos olhos se encontram para uma tarde de folia debaixo do Sol, como se o asfalto fosse grama, como se meu corpo fosse grama.
O tempo roeu o pé da minha cama numa tarde em que me tranquei no banheiro dos fundos para contar minhas histórias aos azulejos desinteressados.
O novelo da minha vida está por um fio infinito, fiapo frágil da eternidade.
Todas as paredes estão trancadas conforme sua vontade e eu estou fadado a ser uma carta qualquer de um baralho viciado, acanhado entre seus doces dedos, ou nos lábios negros dos cachorros, em pedaços.
Os cachorros dos meus cinco anos brincam com a bola do tempo na porta do meu peito.
A lua não está nem aí.

R.B.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Insomnia - R.B.




Insônia, insônia minha

Me carrega com a nevóa dos teus braços para o palato da boca da noite, boca de pólvora seca; as estrelas são dentes prateados, prantos, prontos para se apresentar num bocejo longo de gato preguiçoso na espera: os peixes voadores ainda rolarão do teto para o colo.

No âmago dos meus olhos goteiras caem no chão fazendo

ploc

como se caíssem dentro dum balde já cheio de sonhos sonhados com água doce do aquário esquecido num quarto enorme, repleto de quadros meus, minha figura, mas com rosto diferente, cabelo diferente, voz diferente, mas ainda assim eu, com o abismo dos meus prantos lembrando o eco dos teus sonhos profundos, onde não há

ploc

caindo feito gota em poça. No quarto não há poça, não há balde, o chão é todo lago, e qualquer gota que cair fará

ploc,

e qualquer ninfa, anjo, seres voadores multicoloridos da poesia intransigente do transtorno do sono, sem remédios para poder contar farão

ploc

e te verei distante, brincando com cavalos alados rolando pela grama, cachorros azuis pulam por borboletas da cidade grande, aprisionadas na imaginação dos muros da avenida Paulista, que não dorme, e ouve

ploc

ploc

ploc

o motor dos caminhões atrapalha a concentração das minhas mãos, minha razão procurando um sinal de qualquer coisa, qualquer santa do aparelho de televisão ornamental, suspenso na parede, inclinado feito ventilador,

ploc

ploc

Insônia, insônia minha, até quando deitarei minha cabeça nas tuas coxas quentes de amazona, até quando terei de abanar meu rabo na espera de um suspiro; até quando a noite passará por mim, se espreguiçará e, com bafo de estrela cadente vai me perguntar

- de onde vem esse barulho de goteira?

Do limite dos meus dedos, das sombras, do colírio vencido dentro do armário, da ponta do meu beijo, do balde que nunca transborda: bom dia que já é hora de acordar.

R.B.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A Salvação


Só o surrealismo salva!!!

quarta-feira, 9 de março de 2011

A sala do médico




Ainda bem que pintaram essas paredes de azul, que tiraram o branco e aproveitaram para levar os sofás antigos, certo que agora ninguém mais vai ficar aqui na minha frente, lendo revistas velhas e olhando no relógio a cada hora que passa. A espera me trás lembranças de brotarem gotas enormes de suor às minhas costas e de fazer meu corpo tremer e me perder no tempo e no espaço de mim. Tudo ficava muito pior com as paredes brancas, aquela gente e eu apenas repetia baixinho

- não sei quanto tempo vou agüentar,

ao invés de dizer

- Sebo Boa Esperança, em que posso ajudar?

Não conseguiria me mover ou pensar no preço dos discos, dos jornais, tanto faz que tivessem etiquetas diante de mim, tudo era aquela sala branca e o sofá, as pessoas a espera, olhando o relógio, contando os minutos, esperando como um dia esperei ao lado dele, o doutor chamar-nos para dentro

- Vamos, Senhor Alberto?

O Senhor Alberto a olhar para mim, esperando que eu me levantasse também, antes que o médico dissesse vamos, antes dele, não vê que o doutor está chamando? Não movi um músculo e vi como ele se arrastou para dentro da sala, que de onde eu estava podia distinguir apenas os pés gelados da cama de metal, até que o médico e sua voz perguntou:

- A senhora não vem?

Não tive coragem de dizer não, simplesmente não, apenas balancei o rosto, tremendo, estranhando aquele sorriso intruso nos lábios, camuflado com a branquidão das paredes.

Antes mesmo que fechasse a porta, eu já comigo mesma

- Não sei quanto tempo vou agüentar.

Não sei dizer se de fato se agüentei, se não fui eu que saí pálida da sala, sem saber o que dizer, sem saber porque o médico se escondia atrás da porta, despedindo-se com um aceno tímido, engolindo o sorriso que há sei lá quantos minutos atrás ostentava como um bilhete premiado de loteria, não sei quanto tempo agüentei e quantas vezes me perguntei

- Não sei quanto tempo vou agüentar,

Quantas pessoas entraram, sentaram ao meu lado, folhearam as mesmas revistas dos que ficavam sentados no sofá olhando o relógio com a mesma freqüência, quantas vezes o telefone tocou e a secretária atendia

- Consultório médico,

Com uma animação que eu não tenho quando atendo

- Sebo Boa Esperança.

Ainda bem que pintaram as paredes de azul e trocaram os sofás de lugar, assim não me lembro de como suas mãos estavam geladas e de como seu rosto pálido. Nunca vou me esquecer do olhar absorto pelas paredes e a mudez que foi rompida quando a porta da sala do médico abriu e ele chamou outra pessoa

- Moça, quanto custa esse livro?

O segurava, virava, mirava-o como se nunca tivesse visto nada parecido antes, como se ela mesma tivesse feito a pergunta em outro idioma, ou tivesse perguntado

- Vamos?

Mas sem o sorriso, sem as rugas que surgiam ao redor dos olhos, sem o gel no cabelo, sem saber responder a pergunta e a mocinha a me olhar esperançosa ou ao relógio cada vez que eu girava o livro em minhas mãos, sem notar a etiqueta branca, na primeira página, me assustando quando a menina arranca o livro das minhas mãos, descobrindo a etiqueta com o preço na primeira página.

- Não sei quanto tempo vou agüentar.

Ainda bem que aquelas paredes brancas não estão mais aqui, isso facilita que eu volte a ter atenção e torcer para que da próxima vez que alguém me perguntar

- Moça, quanto custa esse livro?

Eu não voe embalada pela memória a um lugar que me faz derramar lágrimas disfarçadas de silencio. Ainda bem que tiraram o sofá, as pessoas, as revistas, para que eu possa viver o dia em si, ver rostos diferentes, não afundados nas revistas; há aqui apenas o mesmo velho, que fica horas vendo as capas dos discos, o rosto das cantoras, encara algumas com tanta paixão que às vezes acho que vai beijá-las, sem perceber que é o plástico, pó, papel, tal qual eu não percebi, quando chegamos em casa, que os talheres não nos encaravam, nem os pires, ou os azulejos, que graças a Deus não eram brancos, e se perguntavam o que havia que o meu marido, que nunca bebeu, tomou quase num segundo a única garrafa de pinga que tinha em casa.

De repente o velho escolhe a capa do disco, e leva o disco abraçado, sem colocar numa sacola. Quando ele sai me deixa aqui para torcer sozinha que as paredes não fiquem pálidas de novo, que ninguém saia de alguma sala escondida para me perguntar:

- Vamos?

Eu sem saber o que responder, sem saber se é pior ficar aqui, me perguntando

- Quanto tempo será que vou agüentar?

Será que deveria ter entrado com ele, ter impedido que suas mãos ficassem geladas, ou que todo seu corpo tremesse angustiado. É possível que se eu estivesse ao seu lado, ele não chorasse quando o médico disse:

- infeilzmente...

Fingindo que era a primeira vez que dizia isso para alguém, fingindo que apesar de tudo, fez-se o que se pode.

Aposto que se estivesse com ele, não teria as capas das revistas tatuadas na cabeça, nem aversão à paredes brancas e sofás de quatro lugares. Certamente nem estaria aqui, me confundindo toda quando o telefone toca. Com certeza não atenderia

- Consultório médico,

Quando na verdade deveria dizer

- Sebo Boa Esperança,

De preferência, sem lágrimas na voz.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Stand up poetry




Eu quero ser um verso partido,
um haiku quebrado,
um violão sem corda,
a lista é longa.

Deixa que eu seja direto,
uma flecha entre nós,
o chão que você pisa,
os cacos partidos de um vaso qualquer.

Deixa que eu seja a gota da chuva
na lente dos teus óculos,
a coceira no meio das costas,
a vontade lasciva por chocolate.

Quero ser esta noite o gosto pelas coisas belas
o teu corpo no box do chuveiro
escondido pelo vapor.

Deixa eu ser o amor.


Antes que me torne aquela saudade,
a porta aberta da rua,
a vontade de ir para casa,
a folia tranquila de uma madrugada
terça de carnaval.

R.B.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O nascimento de uma idéia morta




Querem me entender, eu sei, querem me entender e ficam imaginando

- por que diabos esse velho carrega esses discos para lá e para cá

Enquanto eu caminho alheio aos olhos, aos semáforos que mudam de cor para os outros

- sempre para os outros,

E as buzinas dão o ritmo dos meus passos, que eu acelero conforme elas se aproximam

- quer morrer, velho?

Gritam os capacetes, os punhos em riste para fora dos carros, vibrantes como cordas vocais, as retinas exaltadas, os olhos vermelhos, sequer notam os discos que eu carrego debaixo do braço, sem sacola, com a cantora estampada na capa, um microfone antigo próximo aos lábios, há mais dois debaixo deste, que me serve de estandarte, para suscitar a curiosidade nas pessoas, nas outras pessoas, não naquelas que se resumem à coisas pequenas como

- quer morrer, velho?

E não aproveitam para ver que há uma relíquia do jazz nos debaixo dos meus braços; se soubessem, talvez tivessem me dado passagem, tivessem reduzido a velocidade, ou quem sabe até

- quer uma carona, senhor?

Mas não é assim que as coisas funcionam por aqui.

Enquanto cruzo o viaduto meus passos são longos, pois gosto de encarar os pombos nos olhos; são eles os donos deste viaduto, eu sempre soube disso, tomam conta da cidade pelas manhãs, protegem as esquinas enquanto se alimentam de restos. Eles viverão de nossos restos enquanto sempre serão inteiros, hirtos, nos beirais das pontes, dos viadutos, e nós sempre seremos os restos de que eles vão se alimentar. Debaixo do viaduto há uma vontade, um sonho adolescente, um sonho de liberdade que não se conquista com o pagamento em dia dos carnês, dos boletos, de todas as coisas que arremessam por debaixo da minha porta, sem saber ao certo se pertencem a mim mesmo, quando abro a porta para indagar

- você tem certeza que isso aqui é meu?

Já não há mais ninguém, é difícil perseguir as sombras nos corredores dos prédios antigos, elas se dispersam com as sombras que já ali habitam há anos, e se mesclam, e se misturam entre si, formando um corpo único de sombras que nunca responde pergunte alguma, a qualquer hora do dia; cansei de me sentar nos corredores a espera que alguma sombra saísse debaixo das portas para conversar, para compartilhar algumas coisas que havia pensado, para ouvir a voz de outra pessoa, mas as sombras são inatingíveis, num prédio do centro da cidade e toda luz, toda luz é apenas uma sombra que está a nascer.

Já estamos no final da tarde e os pombos, aqueles que levantaram mais cedo se retiram para dormir, e sobem aos telhados, às coberturas dos prédios, para o justo sono, e os carros acendem os semáforos, e daqui do alto vislumbro mãos solitárias de dentro do carro, trocando as marchas as estações do rádio, acendo os faróis. Ao menos eu tenho os meus discos, tenho esta mulher para passar as noites, com estes olhos negros abertos e estes lábios molhados, pintados com muito jeito, mais fulgurante que as luzes alaranjadas do fundo, mais fulgurantes que as luzes de todo o palco, luzes o bastante para não me fazer pensar nas sombras, nas pombas, nas bombas que dormem nas bocas dos carros

- quer morrer, velho?

E conforme o céu dá para se esconder atrás dos prédios eu acelero meu passo para meu apartamento; o centro da cidade não é lugar para um senhor como eu, para essa moça que segura tão docemente o microfone e aposto que está muito agradecida por eu tê-la tirado daquele monte sujo, daquele canto esquecido do sebo, onde a colocaram sem perceber que não era ali seu lugar, misturado com paisagens abstratas e homens cabeludos, vestidos com calça de couro. Seu lugar era num pedestal, logo na entrada para que todos pudessem admirar. Sim, definitivamente, ela está agradecida e não merece perambular pelas ruas escusas do centro da cidade, onde a qualquer momento, lábios, às vezes não tão puros quanto os dela, chamarão

- psiu,

E seguido do

- psiu,

Vira um aceno com o dedo, fino de fome, porém ornado com um esmalte rosa, ou vermelho, coordenado com a cor da blusa fina, quase transparente, denunciando formas vivas recheadas de lágrimas que não se derramarão nunca, pois, caso comecem não terminarão nunca, e toda a cidade será inundada, por isso, que as lágrimas se trancam num

- psiu,

E se escondem entre a sujeira das unhas tingidas de vermelho ou rosa, ornando com a cor da blusa, fina, gasta, quase transparente, denunciando com um pudor tocante as formas do sacrifícios que me faz pesado de dó. Em pouco tempo, os chamados

- psiu,

Vão ficando distantes. Não tenho dúvida que alguém perguntará, em breve,

- quer uma carona?

E a garota, a essa altura, congelando de frio, vai deixar de fazer bolar com chiclete, vai deixar de pensar

- que merda de dia,

Ou coisa parecida, e vai entrar no carro, e aceitar a carona para lugar nenhuma, para logo ali, esquecendo-se de que, dentro de vinte ou trinta minuta, estará de volta, com um

- psiu

Um pouco mais fraco, um pouco mais rendido às lagrimas que, que derem para cair, não param nunca mais e hão de inundar todo esse mundo.

Quando chego no meu prédio, é a luz do poste que me dá

- boa noite, senhor,

Não é o rapaz largado no chão, com um pé faltando o chinelo, ou a senhora gorda do outro lado da rua, desafiando a consistência da cadeira de praia com seu corpo cansado, que me dirigem à palavra, não são as garotas que passam segurando as bolsas com as duas mãos ou os olhos assustados. É a luz do poste que ilumina meu caminho, inclina o tronco, olha-me nos olhos, estende a mão, indicando a porta de entrada, quase sempre obstruída com o rapaz alto, magro, sempre usando óculos escuros, que cede tão pouco espaço para que eu possa entrar, que temo esbarrar meu corpo no dele e derrubá-lo; mas isso nunca aconteceu. Apesar da magreza, todas as vezes que esbarro no corpo do rapaz sou eu quem sou jogado para o lado e por pouco não caio de volta na rua. Às vezes murmuro,

- perdão,

Mas quando olho para trás já é tudo sombra. O rapaz já é sombra, os óculos escuros, a porta obstruída, sutilmente encostada pelo vento.

Porém, desta vez não havia rapaz, nem pouco espaço para que eu pudesse passar, nem trombada, nem

- perdão.

Mesmo assim, mesmo não havendo nada, a porta silenciosamente encosta e tapa a entrada da luz que cordialmente me mostrou o caminho e dirigiu-se a mim tão educadamente,

- boa noite, senhor.

Com um certo pudor, tapo os olhos da mulher que segurava o microfone como se fosse uma rosa, não quero que ela veja o matiz das paredes que servirão de platéia para sua voz, não quero veja os corredores por onde terá que passar para entrar no meu quarto, não quero que veja a umidade que domina todo o canto esquerdo do andar; ela deverá ver apenas o meu quarto, minha cama empilhada de livros antigos, discos, roupas, e que, apesar da estarem ali estão limpos, e não foram contaminados pelo ar viciado do prédio. Por isso, apenas quando abro a porta do quarto, e fecho-a atrás da mim, destampo os olhos da mulher cujos lábios abertos parecem prevenir um sussurro, quiça um beijo, desses de carinho, que vem junto o sol da manhã, que ela ficará muito feliz em saber que preenche todo o meu quarto, e eu faço questão de deixar entrar, por isso mesmo não comprei cortinas.

Deixo-a separada dos outros que também salvei da pó, da poeira, do mofo, do esquecimento, deixo-a repousada na única cadeira do cômodo, bem diante da máquina de escrever, sem papel, sem tinta, com algumas teclas totalmente cegas, e enxó uma pequena panela com água, não digo que é da torneira, não digo, e preparo um café. Um a um coloco os livros diante da porta, já devidamente trancada, coloco as roupas em cima da máquina de escrever. Não são muitas, um homem da minha idade já não carece de tantas roupas assim. Tiro os sapatos, coloco-os debaixo da cama, volto para a cozinha, não sem antes acariciar os cabelos da mulher, que tem os olhos tão negros, tão penetrantes que são duas explosões prestes a nascer, bem ali, na minha cadeira, enquanto eu faço o café.

Dou o primeiro gole sem oferecer a ela, deixo escapar, em voz alta, para a cortina que divisa a pequena cozinha do meu quarto,

- não tem açúcar, por isso não ofereci.

E volto para a sala, que também é meu quarto, que também é meu refúgio, e é minha memória e dou para observar os retratos, não são meus. Já estavam aqui quando eu cheguei. Mas este garotinho, com essa bermuda – julgo ser marrom – presa por suspensórios, e esse bonezinho, poderia ser eu, sem dúvida poderia ser eu. Esse homem com bigodinho fino, e cabelo bem separado, poderia ser meu pai, talvez tudo tivesse sido diferente se esse homem caridoso, que faz questão de posar de mãos dadas com seu filho na foto, fosse meu pai.

Estou neste apartamento, no andar térreo deste prédio no centro da cidade há pouco tempo; foi o único que consegui alugar com uma aposentadoria que inventaram para mim. No mesmo dia que descobri que podia contar com uma aposentadoria, um rapazinho, que poderia ser eu, mas era meu filho, decidiu que não era mais possível que eu ocupasse um quartinho um pouco menor que esse aqui, nos fundos da sua casa.

- Não tem problema, filho. Sabe que não quero incomodar.

E não me lembro o que ele disse, ou se ele disse alguma coisa, ou se foram as costas dele que me deram a impressão de ter tido alguma coisa, que não eram palavras, mas sim, um simples

- não é possível que você continue a viver aqui,

Em resposta a esta afirmação, dele, ou das costas, ou da cama que rangeu quando eu me sentei, respondi,

- Não tem problema, filho. Sabe que não quero incomodar.

Um dia, provavelmente contarei toda minha história a ela, que está ansiosa para que eu tire esse disco negro de dentro do plástico e preencha o quarto com a sua voz, com a sua melodia, com a energia que emana de seu corpo esguio, de vida; pego o disco, giro-o entre os dedos, vendo-o dos dois lados, abraço-o, pouso-o perto do coração para que ouça primeiro a minha música, depois, outra hora, contarei toda minha história a ela, mas antes, preciso pensar em como direi que não tenho aparelho de som.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A beleza, a autoria e a admiração





Faz algum tempo que eu não escrevo nada. E não é que não escrevo para o blog, ou para minha mulher; não escrevo para ninguém, nem para mim. Minha fonte também não secou, não é isso. É que venho buscando uma beleza, dentro e fora de mim que se não for ela que ficar no papel, entre as letras e o suor, não valerá a pena ter escrito.

É possível que esse estado de beleza nunca chegue e eu nunca mais escreva. E daí? Eu sou uma alucinação na ponta dos seus olhos.

Enfim, enquanto eu não encontro essa tal beleza, enquanto não consigo me decifrar em palavras, um grande amigo meu e um escritor genial a encontrou. Ouso dizer que escreveu um dos textos mais bonitos que já li.

Não o transcreveu para vocês, é preciso que entrem no mundo dele para tanto.

Divirtam-se.


Ao meu amigo e autor, um grande e emocionado abraço.

R.B.