segunda-feira, 31 de maio de 2010

Um jazz Andrézão, um jazz

When He and I will be as one, canta a Nina enquanto meus dedos congelam e meus pés clamam para serem sufocados pela meia; canta para minha alma careca e aos meus olhos secos, entretidos com essa parede doente, que não ouvia sua voz, when He and I will be as one, grave, cantando do fundo de uma garrafa de vinho que não era para ser minha; eu sem poder ligar para minha mulher e dizer que o vinho está com gosto de vinagre. Posso ligar pro Massa ou pro Brunão, dizer tudo está perdido amigo, acabou a fé, quando a única coisa que queria era ligar para minha Pequena e dizer que não sei onde estão as minhas meias, que meus dedos estão gelados, todos eles, da mão, do pé, da nuca, das costas, tudo gelado, com a voz arranhada da Nina ao fundo He and I will be as one, e eu imaginando quando você, Pequena, cantava essa música para mim. Sinto mais frio, as paredes mais graves, a garrafa mais funda e você me perguntando se andei bebendo sozinho de novo, sem razão para mentir digo que o vinho está com gosto de vinagre, e você a qualquer momento vai dizer tenho que ir, vai começar a aula. Respondo para a mudez simpática do telefone que o vinho está com gosto de vinagre.
O disco roda na vitrola, eu me pergunto quantas rotações tem essa porra, pergunto em voz alta pras meias espalhadas pelo quarto como bolas da árvore de natal, protegidas pelo pó no fundo do armário, pergunto pras janelas fechadas, sofrendo os golpes da chuva, minha Pequena logo mais estará na chuva cantando baixinho He and I will be as one, e eu já em casa perguntando pra cadeira mais agasalhada do que eu quantas rotações tem essa porra, me referindo ao meu coração. A Nina diz pra mim I put a spell on you, e me sinto amaldiçoado, só por ter dito I put a spell on you, menos afinada que minha Pequena.
Penso, se eu pudesse escolher, que palavra eu seria.
Vinagre.
Disse em voz alta, com todas as letras Vinagre. Quis ligar para minha Pequena e dizer oi amor, eu sou vinagre, e desligar, rindo como quem toca a campainha das casas e sai correndo; depois vou ligar pro Massa, pro Brunão e convidá-los a tocarem campainhas e sair correndo também, debaixo do frio, com os dedos congelados, com a chuva a castigar as janelas abertas, plantando lágrimas nos olhos das paredes doentes. Vou ligar pra todos meus amigos, vamos tocar as campainhas e correr, amigos; a Nina canta esse vinho está com gosto de vinagre, ou melhor, ela grita And I don´t care If you love me, I´m yours right now. Saudades de falar com minha Pequena, que está na aula e não pode me atender, Desculpe o celular está programado para... Oi Pequena, o vinho está com gosto, ou melhor, I put a spell on you... deixe sua mensagem após o... because you´re mine.
Dou para pensar nos meus heróis, suas vísceras, vidas e me sinto vazio como um canudo, e dou para pensar em camas de hospitais, velas, velhas, cães e gatos pela metade, filhotes, avenida Santo Amaro, na fome, no gosto amargo na boca que não sai, eu juro que não sai. Ligo pro Massa, pro Brunão, pra Pequena, pra todos meus amigos, pra chorar um choro trôpego de bêbado, pra chorar os quartos de hospitais, os vivos, os poetas, a Nina, os gatos vivos, as mães, os cães vivos, os pais, os canudos que não afundam e são ocos, ligo para chorar a vida, especialmente para chorar a vida, e a meada que acaba de perder seu fio, nesse último gole de vinho que tem gosto de sangue.
Canta para mim quando eu acordar Pequena, canta outra coisa, não quero mais a Nina, não quero mais o celular que ninguém atende, canta para mim uma canção de ninar e me levanta desse chão, desgruda minha cara do livro de poesia, esfrega a saliva que escorre da minha boca pra gola da camisa branca, me levanta e me cobre com as roupas da cadeira mesmo. Canta, canta uma canção diferente, aquela que você sempre canta, melhor que a Nina, melhor que as minhas bobagens perdidas no seu caderno de estudo; canta uma canção de ninar, se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar. Esquece o cansaço e embrenha seus dedos no meu cabelo, beija minha cabeça, liga pro Bruno, pro Massa, pra todos os meus amigos e diz que nem tudo está perdido, ainda há fé. Eu te agradeço amanhã, primeira coisa de manhã. Eu prometo.

Em forma de canudo, 31 de maio de 2010.

domingo, 30 de maio de 2010

Auto-retrato

Auto-retrato - Álvaro Alves de Faria
extraído do livro "Coleção Melhores Poemas - Álvaro Alves de Faria"

Ando sempre com a sensação
de estar à beira de um colapso.
Mas sei que isso faz parte
da brutalidade cotidiana.
Enquanto não dou um fim a tudo,
me submeto à próxima
vontade de existir,
como se tudo fosse normal

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Poetero - II

O mundo precisa de mais
Arroz
Feijão
e Vida.
E se não tiver arroz?
Fritamos um ovo.
E se não tiver feijão?
Fazemos um bife.
E se não tiver vida?
Sentamos na sala,
assistimos a novela
e torcemos para a morte chegar
na hora dos comerciais.

R.B.
Na cozinha, 27.05.2010.

Falso Poeta

Eu sei, não sou poeta. Mas é que às vezes uma poesia meio capenga vem à mim. Não tenho coragem de negá-la, dizer não, não fui eu ou é ruim. Mesmo sendo o maior crítico de mim mesmo. Enfim. Eis um pequeno poema:

Eu acredito na palavra,
no sem sentido
do sangue que corre
na contra-mão das veias.

Eu acredito nas pessoas.
Sim! Nas pessoas!

Eu acredito no de sempre,
no batido, na rotina, no cotidiano
que suga minha vida pelo canudinho,
aos poucos, pelos raios de sol.

Contudo, não acredito em mim,
pois nos momentos de aflição maior,
dentro da minha cabeça,
trago meus cigarros imaginários
e assopro a fumaça na cara
do tempo e da verdade.

Só por despeito.

R.B.

sábado, 22 de maio de 2010

Não deixaram

Eu devia parar de ler Kafka

Quis te comprar umas rosas, mas não deixaram. Por mais que eu forçasse a passagem, implorasse e distribuísse socos e pontapés para tudo quanto é lado, não me deixaram. Ofegante, tentei convencê-los de que eram para minha avó, internada num hospital, cuja única felicidade, além dos programas de auditório, era receber as rosas que eu levava. Não mudaram a expressão, cruzaram os braços e parados, me encarando, deixaram uma frestinha entre as pernas para eu sair. Avancei em direção ao menor, e tentei empurrá-lo. Puxaram-me pela camisa, me jogaram no chão: de volta à estaca zero. Levantei batendo as mãos na roupa para tirar a sujeira, pó, e toda sorte de coisas que se pode encontrar na rua, e disse: está bem, hora da verdade. E com toda sinceridade menti dizendo que eram para minha mãe, cega, coitada. E caso não leve as rosas para casa, vai dizer horrores de mim, derrubar tudo ao seu alcance e, por semanas amaldiçoar o filho, que não dá valor à mãe, não a ama. Perguntei à cada um deles se tinham mãe. Se não conseguir essas rosas terei problemas para o resto da vida. O maior deles olhou por cima da minha cabeça e acenou. Notei mais três homens se aproximarem e me imaginei sendo carregado por eles, feito uma cadeira, para fora do lugar. No de óculos avancei, tentei pela primeira vez na vida acertar um soco em alguém. Ele se esquivou e os outros se jogaram em cima de mim. Caí com o primeiro contato, gritei, segurei o choro e pedi desculpas. Desculpa, não faço mais. Um a um se levantou, minha calça fez um rombo no joelho, no qual despontava lágrimazinha de sangue. O sol esquentava minhas costas, me fazia transpirar e cheirar a queijo.

Quis te comprar umas rosas, quis mesmo, juro. E eu sei que vai bater o pé, reclamar que prometi, mil vezes; maldita hora que prometi. Mas não deixaram. Mesmo assim, invocará que eu segurava sua mão, encarava seus olhos, inclusive acariciei seu rosto, beijei sua boca. Como ia saber que não iam me deixar? Ela olhava o roxo no meu olho, o dente capenga na gengiva, para lá e para cá feito um balanço, o nariz meio torto pelo golpe derradeiro, e apenas dizendo: você prometeu.

Quis te comprar umas rosas, não deixaram.

R.B.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Razão

O Maldito saiu sem se despedir, pensou. Pegou as coisas, e saiu pela porta da frente. Não disse: Tchau. Já vou. Já volto. Fui. Não me espera. Ficou sabendo de sua saída pelo bater da porta, cujo eco fez questão deixar mastigando o ar, julgava que ela não despertaria com o seu adeus. Ela ouviu, e não chorou. Sorriu, sem saber a razão, mas estava lá, com a brancura dos dentes contrastando com a escuridão do quarto. Por um breve instante repetiu: Maldito, Maldito, Maldito. Não por raiva, mas por ele; achou que merecia essas palavras, por consideração. Logo parou, pois gostava da sua vida assim, imprevisível. O Maldito achava graça quando ela não respondia sempre que dizia: acho que vou embora. Via tristeza em sua mudez, pobrezinho, era expectativa. Ela diria: vá, se pudesse; vá com Deus, quero ver encontrar outra como eu, que não se importa quando troca os nomes, sussurra todas as coisas que eu sussurro na tua orelha, que finge como eu finjo, é isso aí: finge tão bem quanto eu finjo. Um calafrio percorreu suas coxas, eriçando os poucos pelos dourados que nela nasciam. Ansiosa, queria ver como os homens reagiriam aos seus encantos, tão frescos e ansiosos. Ameaçariam se jogar pela janela, pela ponte, pela sala de estar para dentro do aquário? Ela ria sozinha, jogada na cama, nua diante de seus pensamentos. Gostava de rir, ria à larga. Repetiu com gosto mais duas vezes Maldito e se preparou para ir à academia, sem calcinha.

Emoção

Pegou seu descontentamento, enfiou-o no bolso, dobrou a primeira esquina e flagrou-se de volta à porta da casa dela. Tencionou subir, tocar a campainha; talvez pedisse alguma coisa para beber, algo que fizesse um pedido de desculpas sem gás descer goela abaixo sem borbulhar risos contidos nas paredes das gargantas, algo que preenchesse ambos com um contentamento existencial pleno, que nem bolo de chocolate esparramado pelo pescoço, a aspereza da língua escondida entre o açúcar e o êxtase; algo que os botasse para dormir, e só acordar três, trinta, trezentos dias depois, ainda trêmulos de prazer. Seguiu em frente, cruzou um prédio onde todos dormiam, passou por pombos em estado de graça, inchados feito balões a subir pelos ares em aspirais vertiginosos. Contornou ruas, praças, avenidas e uma ponte enorme, laçando tudo com o cadarço do sapato, só para ter onde ver sua desolação jogando baralho com a tristeza da noite, emperiquitada com seu colar de estrelas. Seu coração batia ao ritmo de uma sonata de Beethoven, mas o amor dela fazia-o sentir-se como um poema obsceno do Bandeira. Repetia: Luísa, Beatriz, Maria, Ana, e cada vez que repetia pensava nos dedos finos, pernas grossas, rosto perfeito, na preocupação desnecessária com o pé da mesa roída em noites carinhosas de amor atrapalhado; lembrava do cabelo frisado logo de manhã, do vestido azul combinando com os olhos (castanhos) e com os sapatos. Repetia: Beatriz, Maria, Ana, Luísa. Na contramão de um sonho perdido, topou o primeiro beijo lendo jornal de vinte anos passados. Tempos em nos quais os lábios dela eram seu único destino: bons tempos, que permanecem estendidos no varal da memória. Por mil anos ficará sentado vendo o metrô passar todas as noites, pensando na vida, remoendo o remorso dado em retorno aos afagos metafísicos e magistrais. No fundo, joga milho ao chão porque sente saudades, o milho que ele mesmo vai catando um a um, pronunciando o nome dela: Maria, Ana, Beatriz, Luísa.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Trecho do meu conto chamado Alheamento

Às vezes acho que tudo isso foi um erro. Às vezes acho que isso tudo aqui não vale nada, sabia?
Mais uminha só, pra acabar de vez e eu ir embora e você fechar tudo. Mais uminha só.
Às vezes tenho uma sensação de, uma sensação estranha, um alheamento, acho que é isso, alheamento, a-lhe-a-men-to, assim, anote aí, que é uma palavra bonita, anote, alheamento. É como se meu coração batesse alheio ao meu sangue, como se meu corpo vivesse alheio à minha vida, como se meu espírito vivesse alheio à mim mesmo. Parece loucura, mas é verdade, não é loucura não. Não. É como se tudo existisse contra a minha vontade, isso se é que tudo existe, ou existe tudo, seja lá o que for tudo, seja lá o que existir, sei lá se é isso que bate, vive e dá saudades da minha mulher, ou a calça preta dela. Me pergunto se tudo não é apenas um erro qualquer, uma cagada. Eu é que não tenho certeza de nada, já pensou se nada for o mesmo que tudo?, que confusão que não ia ser.
A saídera, eu juro. A saídera, pra concluir o raciocínio.
Talvez tudo seja um erro, e tudo seja nada, e eu viva sem saber de nada, que é o mesmo que saber de tudo. Me dá mais um último traguinho que gostei das coisas que falei. Mereço mais um golinho, e me dá uma fichinha, que hoje foi dia de pagamento. Duzentos e cinqüenta mangote e sinto que to com a bola toda.

Acidentes

Oi mãe, só liguei para dizer que vou me atrasar. Estou perdido entre tantos escombros, que nem sei de onde surgiu tanto pensamento para cair em cima de mim, de uma vez só. Não estranhe minha voz, é a água dessa gente que só sabe fazer chorar e quase me afogou. Essa gente, em resposta às minhas perguntas, diz apenas: não sei, não sei, não sei... porém continuam caminhando, para onde? Não sei, não sei, não sei... É isso, acho que vou demorar. E talvez quando eu finalmente chegar, você ache que meus lábios estão um pouco esbranquiçados, que meus olhos voltaram estrábicos demais. Foi uma confusão que eu fiz na calçada; contudo me disseram que anotaram a placa e que alguém, um dia, há de tomar as devidas providências; então, não se preocupe. Se por algum acaso, você ouvir algum canto dizendo que fui visto caindo sem minhas asas de espuma, não acredite. Decerto que janela estava, sim, aberta, confesso; mas não a atravessei. Não agüentaria perguntar a mim mesmo o que foi que eu fiz, sabendo que nunca obterei uma resposta. Acho que estou chegando, mãe. Não devo demorar mais muito tempo. Verdade que já deveria estar aí, mas a estrada é que é ruim. As curvas, faceiras, deram para dançar comigo no colo e mudavam de direção conforme o canto dos pneus. Sorte minha que as paredes das suas entranhas eram feitas de marmelo. É possível que um cheiro de chuva invada seu nariz, meio inadvertidamente, feito gatuno, e que esse cheiro confunda um pouco a lembrança que tem do meu perfume. A culpa é minha. Fiquei tanto tempo deitado na chuva, que transformei todo meu corpo em gotas esparsas na janela. A qualquer momento agora, mãe, a campainha vai soar, e, se por coincidência, soar rápido demais, antes de desligarmos, foi porque peguei carona nas asas da saudade. Bom, preciso desligar, que o céu vai abrir, amanhã.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Nasce a noite mais quente do ano

A meia-noite inicia seu bordão atrás dos prédios que escondem o horizonte, todas as luzes estão apagadas, os lençóis são brancos. A meia-noite inicia seu bordão sob a minha cabeça molhada de suor. Nasce a noite mais quente do ano.
O arsênico borbulha na panela, as praças de névoa, o sino pede um refresco e não toca, por mais que se dependurem na sua corda e ele se mova pra lá e para cá não adianta, ele não toca.
Grupos permanecem em silêncio, as pessoas se afastaram, eu, infelizmente estou cansado e com sono demais para continuar. Autômato me deito com um livro na mão. Não há ninguém ao meu lado, não posso me cobrir, não posso continuar, boa-noite.

R.B.

Ouch - Resultado revista Ficções 19 - Mariana não está lá

Amigos,

hoje saiu o resultado da Revista Ficções 19, meu conto Mariana não estava lá. Não posso dizer que fiquei feliz com isso, ou que também fiquei triste. Acho que faz parte.




Mariana


Para Mariana

São Paulo não tem cheiro de mar. Tem cheiro de tudo: de lago, de rio, de poça, de esgoto, de chuva, de chorume, mas de mar, não. Por alguma razão, que me fugiu sem deixar vestígios, eu sabia que, se não sentisse cheiro de mar, ia morrer. Meu corpo me confirmava isso; passou a tremer, a visão se atropelava escada abaixo, o coração ameaçava explodir de tanto precisar do tal cheiro. Desconfio que tudo tenha se iniciado com o sonho que tive essa noite.
Estava quente, abafado, me sentia nas ruas do Recife, de João Pessoa ou de Salvador, mas não em São Paulo. Sentia tudo tão cálido que sonhei que mijava areia. É possível que a areia tenha cheiro de mijo, porém não vai ter nunca cheiro de mar. Assim, enquanto mijava rios de areia num bueiro caolho e seco, espalhando grãos de acordo com o capricho do vento, ora em direção ao infinito, ora nos pés afobados, que passam correndo, suados, com pressa, um anjo me disse: vais morrer. Disse assim mesmo, na segunda pessoa para causar efeito, e saiu correndo para pegar uma pipa que morria atrás dos montes, entre as águas espraiadas, habitadas também por anjos, só que de outro tipo.
Acordei sobressaltado, com as mãos suadas e coração prensado no peito. Recebi uma mensagem de um anjo, de morte, do céu de São Paulo, porém apenas um pensamento habitava minha cabeça: preciso voltar a dormir, pois ainda faltavam três minutos para as seis horas, e os juritis, canários e sabiás dormem bêbados no seio de Jurema.
Depois desse sonho, adquiri o hábito de caminhar pela rua aproximando meu nariz dos ombros nus, dos cabelos, das mãos, em busca do que eu precisava para não morrer. Percebi que em São Paulo as pessoas não têm cheiro de mar.
Um pouco decepcionado com a falta de mar nas pessoas, caminhava. Caminhava sem destino, mesmo ouvindo distante, no alto da Catedral da Sé, o gemido do sino, que advertiu: restam doze horas para o fim do dia. Minha perna estava mole, igual aos meus braços e meus olhos, quase gelatinosos a esta altura. Vou derreter logo mais. Pensei em ligar para Moisés e pedir uma ajuda, afinal, de assuntos marítimos ele entende. E outra, a tarefa nem seria tão árdua assim; bastaria que me desse um arremedo de cheiro, uma reminiscência daquele odor que senti uma vez e, pelo que me lembro, me deixou mareado.
Moisés está ocupado. Todos estão ocupados para se lembrar do mar.
Sentei numa mesa, na rua, na Consolação, pensei em pedir uma cerveja. Cerveja combina com mar, no entanto cerveja, pelo que pude ver depois do terceiro copo, nada tem a ver com o mar; cerveja é praça, é esquina, é cadeira de plástico, é noite.
Perdia meu tempo e minha vida, que pingava num conta-gotas asfixiante no Centro de São Paulo. Descrente de minha salvação, tentei lembrar a parte final de um pai-nosso improvisado, para que preparassem as coisas para mim, para que soubessem que ao menos eu fiz o que pude, mas não deu.
Eshtá tudo beim? Senti uma mão tocando meu braço grudado na mesa. Era uma voz diferente, não era daqui. Seria do céu? Um anjo in persona para me levar? Nunca imaginei que anjos tivessem sotaque. Na ponta dos seus dedos senti um ar gelado, toque de onda se aproximando. Quando ergui a cabeça, com a testa vermelha por estar horas abandonada no braço, testa vermelha de desistente, vi seus olhos castanhos, resplandecendo o azul que eu buscava. O mar!
Aos poucos, entre um pedido de informação, de onde fica o Mashp, prum deixa que eu te mostro, e por favor não me deixe morrer, Mariana me salvou, me levou pra tua Vila e lá, nos becos do teu pescoço, senti o cheiro de mar, e me avivei, aos poucos, bem aos poucos, para aproveitar cada gota do suor que vinha da tua profundidade até minha língua. Assim, lentamente fui sendo tragado, onda a onda, até que me engoliu, pelos poros, pela boca. Não lutei, não tentei nadar de volta para tua margem e, submerso em teu corpo me rendi, satisfeito e embevecido, erguendo a bandeira dos afogados.

sábado, 15 de maio de 2010

A Praça do Ovo - Marcelo Mirisola

"Quando eu não sabia escrever fazia poesias. Avenida Paulista, Conjunto Nacional. Sexo. Em 1982, W. Spitaletti impunha respeito com seu chevetão cor-de-laranja. Uma Pantera Grudada no Vidro de Trás...merda. Tenho saudades, vontade de matar.
Centrão. Biblioteca Mário de Andrade. Sebo na Sete de Abril, Galeria Pajé.
Ontem chorei por causa do babaca do Tarcísio Meira às margens do Ipiranga. Não estou nem aí pra transcendência. Não estou nem aí para a iluminação. Minha primeira foda não foi grande coisa. Uma ligação sentimental inexplicável com os córregos canalizados. Obras do metrô. Governo Quércia".
(A Praça do Ovo. O Herói Devolvido. Marcelo Mirisola. Ed. 34,1ª Edição)

Buenos Aires Até o Fim - Marcelo Mirisola

"Porra! Se o cara não fizer LITERATURA aqui, vai fazer ONDE??? No largo de Pinheiros? Então vou ser gauche no largo de Pinheiros? Tá, então tá.
Até a bic dos caras é nostálgica, dilacerada. Aí anoiteceu e eu estava na 9 de Julio. Vi uma lua cheia dependurada no Céu. E me perguntei: pra quê? Os caras têm Cecilia, Agatha, Angie (ai, Angie), Cuños de Acero Grabados y Fichas Estampadas y mas allá de eso El Complejo Deportivo Futbol Cinco - Café-Bar, Indoor Soccer. S.R.L. Deus! Oh, meu Deus! Pra quê a lua cheia? Um Gauloises para desdenhar da lua de Buenos Aires".
(Buenos Aires até o fim. O Herói Devolvido. Marcelo Mirisola. Ed. 34., 1ªEdição)

terça-feira, 11 de maio de 2010

Adeus Rua Butantã! - Marcelo Mirisola

IV - Um breve comentário sobre o destino

Destino é algo que se associa aos líquidos dos seres disfarçados de "minha senhora" e, sobretudo, o destino contabiliza o número de fraldas cagadas e a assimilação do senhor bigode frente a este ou aquele outro estado de coisas medíocres e promoções "imperdíveis" nos fast-foods da vida. No meu caso as coisas começaram a mudar quando resolvi, livre e independente do bigode, que o filho da Cris era veado. Depois mandei o casal Duarte para as profundezas do inferno. O japonês nunca irá me entender. Que se foda o japonês (a propósito, que se foda o japonês novamente). Para entender a idéia do destino na vida de um sujeito como eu, levado a contragosto, é preciso entender que sem a porra da grana para conduzi-lo não dá para sequer conjeturar de um dia ter um bigode. Trata-se de uma impostura, dr. Galeano. Eu me sinto objetivamente enganado. Não tenho um bigodinho que me sirva ao deboche. Onde está minha senhora? As crianças? A Marajó 85? A felicidade que eu faço questão de esculhambar? A minha felicidade? Foi por querer apenas um bigodinho que eu sofri mais do que todas as fraldas cagadas na subida da serra. Lá do alto, as crianças. Ao fundo a baixada Santista, coberta de neblina.

(Adeus Rua Butantã!. Fátima fez os pés para mostrar na choperia. Marcelo Mirisola. Ed. Estação Liberdade)

Quem disse que resisti 30 anos? - Marcelo Mirisola

"Amanhã, por exemplo. Amanhã vou dar um fim nos pés de mamona. Amanhã mesmo vou comprar uma televisão e um forno de microondas (a minha ambição são as pipocas amanteigadas). Vou contratar uma empregadinha. Amanhã mesmo vou atear fogo nesta minha bela casa de praia com vista para o mar. Amanhã é o meu dia de ser feliz. Amanhã não vai ser diferente.
Resistir não é Resistir.
É sobretudo não ter ninguém. Mijar na pia. Dormir sobressaltado e ter pesadelos mesquinhos. Resistir é um dia inteiro de esquecimento. Um cachorro. Um cachorro, não. Resistir não é ser impetuoso e não é ser covarde. Resistir não é resistir. É saber que noites em que as coisas se perdem (esta noite um cogumelo brotou nos meus tímpanos). Assim é resistir onde tem poeira. Às quartas-feiras costumo ligar para os meus orientadores. E eles querem saber do movimento das marés - o que também faz parte da resistência.
Mas quem são eles?"
(Quem disse que resisti 30 anos? Marcelo Mirisola. Fátima Fez Os Pés Para Mostrar Na Chopperia. 2ª Edição. Editora Estação Liberdade. Pág.21)

Marcelo Mirisola I - Introdução

Estive fazendo nos últimos dias um balanço de tudo que me aconteceu desde que decidi levar à sério esse negócio de literatura. Fatalmente, entre releituras das obras que continuam a mexer comigo tive que dar um carinho especial a um escritor: Marcelo Mirisola.

O Mirisola deve ser para minha prosa o que o Roberto Piva foi para minha poesia.

Conheci o trabalho do Mirisola antes de saber direito o que era literatura. Na época eu me divertia mais lendo Deleuze, Nietzsche, Schopenhauer e afins do que lendo romances. Até que numa terça-feira (salvo engano), seguindo recomendações, fui para a Saraiva do Shopping Ibirapuera com a minha mãe e uns nomes de livros anotados num papel. Voltei com 2: O Breviário da Decomposição do Cioran e o Azul do Filho Morto (engraçado como as coisas ficam tatuadas na nossa mente. Se sentar e pensar, posso me lembrar onde e como comprei alguns livros muito pontuais para minha vida).
Sei que deixei a mala da escola na sala (ainda estava na escola! Primeiro colegial!), e li, numa sentada, das 13:00 às 18:00, ou algo assim, e quando terminei não sabia muito bem o que havia acontecido comigo, me sentia diferente, isso podia dizer. Acho que foi meu primeiro raio literário certeiro. Antes já tinha lido algumas coisas: Feliz Ano Velho, Dom Casmurro, O Poderoso Chefão, mas a ponto de dar um estalo, não.
Certamente que depois disso muitos outros raios caíram e foram me trazendo para esse mundo das letras, mas acho que posso arriscar que apenas conheci Dostoievski, por exemplo, por causa do Azul do Filho Morto.
Mas porque diabos estou escrevendo isso? Porque como já disse, esses dias estava relendo alguns livros que anualmente separo e quando li Fátima Fez Os Pés Para Mostrar Na Choperia, senti algo estranho, algo que me acompanhou enquanto relia as páginas do Herói Devolvido e acho que vai me acompanhar enquanto releio o Azul do Filho Morto, Bangalô, etc.
Foi aí que eu entendi o quanto a obra desse cara é importante para a minha formação de leitor e escritor (mesmo sendo nossa escrita totalmente diferente). Foi aí que me toquei de como a obra dele foi importante para que eu viesse a dar a mínima para literatura, que viesse a entender que tinha muito mais além do zumbi Machadiano, do índio do Alencar. Foi daí que tive ímpeto para conhecer Dostoievski, Toltstoi, Bukowski, Márcia Denser, Mario Benedetti, Raimundo Carrero, João Ubaldo, Antonio Lobo Antunes e mais uma penca de escritores que me atingiram como raio e não me apresentaram na escola.

Ademais, acredito que é preciso ter um empurrãozinho para cair no mundo das letras, seja do pai, da mãe, de um amigo, de uma professora, etc, e digo com muito orgulho que acredito que o primeiro empurrãozinho que eu tive foi com o Azul do Filho do Morto.

Desta feita, visando homenagear um pouco este escritor, enquanto eu fizer minhas releituras de sua obra, colocarei alguns trechos, frases, pensamentos de sua autoria, para que, quem ainda não o conhece, possa conhecer, e talvez se sentir atingido por um raio também, e comece a ler mais, escrever mais, viver mais.

Enfim, não gosto muito de introduções, mas como este blog era um espaço que eu ia separar apenas para textos meus e pouquíssimas outras coisas, achei pertinente esclarecer. E outra, recordar é viver.

Talvez, eu faça a mesma homenagem a outros escritores também importantíssimos para mim, como a Clarice Lispector, Maurício de Almeida (toda vez que pego o Beijando os Dentes me surpreendo mais com a qualidade dos contos desse cara), ao Dostoievski, ao Raimundo Carrero, mas só o tempo dirá.

Comecemos. Espero que todos se divirtam.

domingo, 9 de maio de 2010

Para ler antes de dormir

Texto de autoria da Fermosa Donzela Mariana Del Tijuca.

De dia queria ser uma nuvem pra te acompanhar e te dar o dia mais lindo e claro,
de noite queria ser um estrela para iluminar seu quarto e zelar o teu sono,
Queria ser seu coração,
porque sempre dormiria encostada no teu peito.



segunda-feira, 3 de maio de 2010

Away

Had to go, away.

Memórias, meus amigos, memórias.

domingo, 2 de maio de 2010

Revista Blecaute - ano 5, nº05, 2010 - Explosões

Amigos e amigas,

é com muita alegria que informo-lhes que meu conto chamado "Explosões" foi publicado na revisa Blecaute, edição 5, nº 5, 2010.

Abaixo segue o link para quem tiver interesse.


Quem quiser comentá-lo, pode fazer isso nesse post mesmo.

Um abraço.

R.B.