sexta-feira, 26 de junho de 2009

Apostila - Álvaro de Campos

APOSTILA

Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Mílton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre
China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos
- Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.
Verbalismo...Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...Elegância de persistir...
Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?!
(Passageira que viajas tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto?
Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E estremece, no mesmo movimento que o da terra,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

segunda-feira, 22 de junho de 2009

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O que sera?

Chico Buarque

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os unguentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite
O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os tremores que vêm agitar
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

Post dedicado para minha mulher.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Palavras-Cruzadas

Minha alma, com passos vagarosos,
vadia pelos postes de luz da Praça da Sé
Minhas mãos não sentem o frio do metal.
Tudo é uma variação dos tons laranja e branco que emanam
das lâmpadas suspensas como estrelas sorridentes.

O chão é laranja, a grama, os olhos;
as palavras que intentei dizer emudeceram
quando supliquei para que saíssem.
Deixaram na porta da geladeira
melosos bilhetes de despedida.

O chão está gelado e um calafrio percorre meu corpo.
O silêncio é um deleite que só se ouve no fim do mundo.
O silêncio é o apocalipse do amor,
escrevi isso num guardanapo uma vez.

Antigamente os ponteiros dos relógios
não se dissolviam em traços luminosos
de um relógio despertador.
Alarme.

O tempo um dia foi sincero.
Lembro que durante muito tempo fui cúmplice
do ponteiro dos segundos;
Vivemos juntos quase cento e vinte e nove mil toques.
Estalos.
Cento e vinte e nove mil palavras trocadas,
cento e noventa e nove mil golfadas de sangue para o corpo inteiro.
Até que decidi gritar as palavras mais absurdas
para os postes de luz da Praça da Sé.

O sino toca na minha mente;
com o eco uma reminiscência de Victor Hugo pousa
as mãos no meu ombro;
Um querubim abraçado a uma cigana debaixo da terra.

Numa festa alucinógena do interior de São Paulo
eu descobri o que era um coreto e
nele cantei em homenagem aos Serafins com asas feitas de fumaça
de escapamentos de Chevette.
Foi num coreto que observei um carnaval de rua
sambar descalço na superfície dos teus olhos.

Tenho uma saudade imensa dessa cidade
inominada do interior de São Paulo.
A luz não era laranja, era amarela,
graças à fogueira que mantínhamos viva
com peças de roupa e diários apócrifos de santos inexistentes
que vomitavam com o lirismo suburbano de donas-de-casa especialistas em palavras-cruzadas.

Objeto pontudo, capaz de dilacerar qualquer pessoa com um único movimento,
contendo sete letras na vertical.
O maior sonho do ser – humano em cinco letras na horizontal,
de braços dados com o pôr-do-sol de Kawabata.

As luzes alaranjadas subitamente
me abandonam na escadaria da Praça
e criaturas acordam.
Vestem-se como um dia gente se vestiu,
andam como um dia alguém andou.
Elas têm cheiro de vida in vitro.
São meus anjos da guarda
que em noites invernais dormem
abraçados debaixo do arco-íris bicolor.
Eles me privilegiam com seus
sorrisos de constelação perdida.

Uma lágrima foge dos meus olhos,
é beatificada ao tocar o chão da entrada da catedral.

Tomo um trago do líquido extraído
diretamente da latrina de Deus.
Me sinto melhor.

A lembrança de um rosto parecido com o meu
estampa a capa dos jornais,
passa rolando enquanto os pastores do apocalipse
desenham seus círculos no chão.
Um dia eu ganhei dinheiro
me valendo do suor que escorreu dessas mãos,
tocaram oboé em algum banheiro público,
agora elas apontam para o céu indicando o meteoro de rosas
entregue por Dante na forma de buquê.

A carne é impura,
diz um bilhete grudado na sola do meu sapato.

Sigo meu caminho rumo ao Páteo do Colégio
mesclado às sombras
me misturo com bustos feitos à base de cera de ouvido.

Sento-me na cadeira, a plaqueta indica um nome que não reconheço
A janela está sempre aberta e por ela bato as asas.
A estação do metro Bela Vista me brinda
com clímax dos restaurantes por quilo
e gordas satisfeitas desenhando
caricaturas na minha comanda.
Os carros cantam boleros o dia inteiro;
as pessoas concentradas demais para dançar
marcam o tempo com os pulmões.

Eu tenho um compromisso.
Um compromisso com o nascimento.

Sinto a presença de pessoas à minha volta,
me observando como se eu estivesse
com as tripas sorrindo para a câmera do fotógrafo;
os repórteres do jornal das oito mal piscam.
Uma dor pungente no peito
Silêncio grita pelos corredores dos hospitais
as muletas são usadas como tacos de beisebol
por crianças na maternidade.

Sussurros ensurdecedores,
dicotomia imbecil e ressaca pós-moderna.

Que suplício ouvir o coração bater!
Que fazer quando não puder mais senti-lo?
Palavra que pode ser usada no sentido de morte ou resultado,
contendo três letras na horizontal.
Espaço de tempo que decorre do nascimento até a morte,
com quatro letras na vertical.
Valendo mil lembranças
em forma de sonhos mordidos.

André Freitas

terça-feira, 2 de junho de 2009

O amanhã foi outro dia.

Alguns dias se passaram e minha fonte continua seca.
Penso demais e escrevo pouco.
O meu relógio não faz barulho, deve estar quebrado. Não tem tic tac tic tac tic tac para rimar com as teclas da máquina de escrever; esse marcador de tempo inutil não me inspira nada - meu relógio é digital, by the way.
Um relógio cuco com ponteiros gigantes, pontudos como uma adaga, quiçá até afiados por um ferreiro japonês viriam a calhar; poderia passar meus dias esperando o passarinho cuco aparecer, rir da minha cara e sumir para rir no dia seguinte. Poderia esperá-lo o dia inteiro para esticar os braços alvos e com olhar súplice gritar: "amigo, não se vá", mas isso é coisa de personagem deprimente, esfaimado e perdido numa Londres fria como a hodierna São Paulo . São Paulo antigamente em dias chuvosos era ao menos acalentadora. Vejam, ainda a amo mas não me reconheço mais em teus olhos e não me sinto bem vindo em teu ventre. Que merda aconteceu?
Tergiversação.
Meus amigos passam por mim e repetem as palavras da minha avó. Eu ouço Roberto Piva falar da praça Alvares de Azevedo antes de dormir e sonho em criar personagens Dostoievskianamente Mirisolianos. Minha criatividade se limita a sakê e peidos com cheiro de pipoca doce - feita no microondas (vide post abaixo). Brigo comigo mesmo por não fazer a barba, por sorrir e por tentar fundamentar que os ET´s fizeram arte com o avião da Air France; as pessoas riem de mim e de minhas palavras. O R-i-s-o. O Bozo cheirava cocaina e eu choro quando ouço Pagliacci.
Boa noite meus amigos.
Amanhã eu volto a escrever meu livro.