sábado, 20 de agosto de 2011

Felicidade é lamber os teus pés

Estou cansado,
(das chuvas de papel, dos arlequins de fumaça e das letras de miasma)
definitivamente,
estou cansado.

Lá está ela (minha assinatura), meio escondida, meio cismada, caindo pelos cantos sem saber como se portar na frente de todo mundo. De onde estou posso vê–la (minha assinatura) encostada nas beiradas, desconfiando se o vestido que sugeri lhe cai bem. Segura a coceira e a vontade de espirrar. Não me encara nos olhos. Decidiu que não fala mais comigo por um bom tempo (minha assinatura); tudo por conta de alguns disparates que disse – completamente movido pela emoção – antes que chegasse, ignorando que algumas línguas, sem demora, correriam por todo o salão para me denunciar aos teus ouvidos (minha assinatura). Fui até onde estava, me fiz de desentendido, sorri e agradeci sua presença com muita cerimônia, feito um dândi copiado dos filmes que via na casa da minha avó anos atrás e que ela fazia questão de dizer: aqueles sim, eram homens de verdade (minha assinatura).
Acabo de concluir meu primeiro livro sem sentir aquela ânsia que dizem parecer com a chegada do primeiro filho ou do apocalipse sorridente nas mãos fumegantes do sol. Fui paciente a ponto de reler cada palavra umas dez vezes, de me orgulhar de muita coisa que não sei como pari e fazer vista grossa para tantas outras que não se aproveitariam nem para redação escolar; não foram suprimidas por conta da redução no preço dos trezentos exemplares, pagos por mim antecipadamente.
Não vou mentir e dizer que foi fácil ou que as palavras escorreram de mim como suor, como lágrima de vinho no bico da garrafa diretamente para tua boca. Passei dias perdido entre linhas geometricamente perfeitas, justificadas apenas para mim e palavras, muitas palavras, que não caberiam em nenhum dicionário do mundo. As maiúsculas se postavam na frente do grupo, feito um executor aguardando as minúsculas terminarem de se enfileirar, homogêneas, cabisbaixas, cônscias da bala surda do ponto final e do despropósito de sua existência.
Aos poucos, – com certo regozijo, devo confessar – fui arquitetando genocídios, crimes passionais, inauditos arrependimentos e perdões injustificáveis, todos amoldados com sonhos e letras do meu próprio punho. Inventei nomes, pigmentação de olhos e dentes que preenchiam bocas em itálico; decerto que menti, criei tramas e as anunciei como se fossem verdade, fiz com que acreditassem em tudo, em tudo! Contudo, não agi sozinho. Fui orientado por uma voz que se apresentou como guia, como cúmplice, mas, quando perguntaram de onde vinha ou o que fazia aqui, se calou como tristeza de mulher.
Minha jornada teve início com o eco do porta–malas se fechando, assobiando tua canção nos meus tímpanos a viagem inteira; fiquei agoniado, pois as árvores encurvadas na calçada davam à cena um ar de despedida; te procurei no espelho retrovisor, achei que estaria acenando o lenço invisível da saudade e que talvez, escondesse com muito esforço lágrimas temerosas de uma futura solidão. Via o asfalto pela metade, carros pela metade, via que seu jardim começava a florescer, que há dias não recolhia o jornal do chão e que você não estava lá. Deve ter corrido para atender o telefone, justifiquei em seu favor.
– Se você acha que ficar numa cabana vai te ajudar, pode ir. Por mim tudo bem.
Insatisfeito, queria novamente sua opinião. Tinha sede das suas teorias, comparações, diagramas. Houve períodos em que, zelosa, chegou a usar meu mapa astral como bússola para dar seus pitacos. Mas depois passou a imitar a postura do seu psicanalista – que não saía da tua boca e da nossa mesa de jantar –: cruzava as pernas, apoiava o queixo nas mãos e espremia os olhos feito dois limões à guisa de transformar em suco seu parecer, suco de: se é o que te faz feliz, vá.
– Acho muito perigosa essa história de ser feliz.
Me defendia, cerrava os olhos e beijava seu ombro gelado enquanto ornava metáforas para homenagear tua paciência e teu ronco de cocote francesa. Uma estranha sensação do psicanalista sentado na cabeceira, dividindo o bloco de anotações amarelado entre transcrições de nossas conversas e desenhos do seu corpo nu, me perturbava o sono.
Movido pelo barulho dum lápis imaginário pincelando teu corpo desnudo da camisola de seda, decidi ficar por uns tempos na cabana do meu avô, bem no interior da cidade, para concluir algumas frases que faltavam no meu livro e transpirar raciocínios que julgava brilhantes, porém ao seu lado ficavam tímidos e se negavam a sobressair. Aqui tenho distrações demais: suas coxas e seios lunares, as contas escondidas debaixo do capacho escrito welcome da porta da rua, as tardes fumando cigarros de névoa, esfumaçando a minha imaginação. Talvez seja melhor, talvez seja melhor ir para o interior.
– Vá, querido. Eu até pegaria teu mapa astral para confirmar algumas coisas, acontece que tirei ele da gaveta de cuecas e coloquei não sei onde.
A cabana cheirava a merda de cavalo; o único móvel servia de café da manhã, almoço e janta para traças e cupins; a cama se resumia a um estrado que só de encostar rangia de dor.
Logo nos primeiros dias senti o sangue correr nas minhas veias de morto–vivo em estado de graça, exibi para um espelho rachado os vãos entre os dentes de uma boa ideia quando a tinha. Cheguei inclusive a acostumar–me com a visão destes dentes amarelos por culpa do café sem açúcar e do cigarro. Isso num tempo em que achava que não conseguiria escrever mais nada.
Bastou que me afastasse das calotas machucadas de tinta, do telefone e do computador para perceber que minha vida se resumia a reticências enfeitando páginas do jornal, buscas por Modiglianis nos espaços públicos e dedos em riste da minha mulher, me lembrando que há uma vida por trás disso, desse negócio que não arrisco adjetivar e que chamam de literatura.
Toda vez que tocávamos nessa nota um diapasão rompia e eu orquestrava uma retórica em dó maior, balançando as mãos para dissolver seus pensamentos no ar, para afastar qualquer possibilidade congruente de defesa da minha parte; balançava as mãos como quem espanta mosquitos e libélulas recém–nascidas, só para não dizer que sabia que a literatura é um sonho sem voz, sem imagem, que não tem sequer talento para existir sozinha. A literatura é um gato cego e banguela que não se consegue alimentar – pois somos nós, sempre, que sentimos sua fome. E o pior, meu amor, é que eu sei, eu sinto no fundo da minha alma que esse gato títere desdenha minha atenção, meu carinho, minhas noites em claro. Por isso insisto em negar peremptoriamente minhas quedas abismais com doses homeopáticas – três vezes ao dia – de absinto, vinho barato e saquê; não quero ouvi–lo ronronar pelos cantos ao ver que padeço de uma fome que não é minha.
Conto com teus afagos espirituais quando voltar dessa sensação de sonho in albis, meu amor. Você não respondeu e, quando pensei em repetir tudo desde o começo fui atingido por uma seta feita daquelas libélulas recém–nascidas que descrevi antes e só servem para dançar jazz no meu peito retórico e fatigado de adjetivações.
Se é o que te faz feliz, vá. Se é o que te faz feliz, vá.
Pelas manhãs, emocionado com insetos que morriam no chão do meu quarto, num ato contínuo e inconsciente, como aquele em que se abre a boca para deixar o vômito romper a barreira dos lábios, meu lápis virou um extintor de serpentina e, sei lá por que o saquê ficou com gosto de suco de laranja, as páginas se consumiam por si próprias e o tempo voou sequestrado no bico de um canarinho.
Na minha cabeça, você, minha querida, é um anjo caído que me ergue ao vácuo dos céus oxidados, em oferenda ao Deus dos que sangram perpetuamente numa hemorragia impossível de estancar. Eu abro os braços em redenção porque sei que logo eu também terei um ponto final para me emudecer; logo, eu também serei apenas uma voz que se calará no momento oportuno, que saberá encontrar o caminho de volta às pernas escancaradas, à placenta, aos pelos, ao choro que sucede o primeiro tapa da vida, à primeira infância e que depois paulatinamente sufocará pelas cobranças, pelos chefes, pelas feijoadas e pastéis de queijo até morrer de sono num domingo ensolarado de Páscoa. Abro os braços porque gosto do barulho das mãos que se esbofeteiam, das folhas que se amassam e caem fora do lixo; gosto dos serafins baforando cachimbos de bola de sabão enquanto pinto minha alma com nanquim nas bordas do meu caderno infinito.
O que você está fazendo, perguntam os curiosos. Estou brincando de ser Nassar. Em coro vão dizer que não, não posso ser Nassar; não posso ser Dickens, Dostoievski ou Drummond. Não posso ser a letra D ou nenhuma outra. Não posso ser o sonho e o espírito desencarnado da solidão responsável pela alvura das paredes dessa cabana de esquecimento, não posso ser a inspiração e a transpiração, não posso ser nada além da insônia e do cheiro insistente de merda dos cavalos que nunca passaram por aqui. Se é o que te faz feliz...
Diz, o que é mesmo que você está fazendo? perguntam olhos injetados de curiosidade. Eu quero criar uma pessoa que come água como se fosse bolo de fubá, que toma saquê com gosto de suco de laranja; criar a possibilidade de se apreciar uma xícara de café sem açúcar e quero ao meu redor pessoas tenras, que se abraçam com sinceridade e acham graça quando digo que Macunaíma c´est moi...
Por muitos dias me deitei somente para dialogar com a vista alva dos olhos cerrados. Não consegui dormir um segundo sequer, ora por causa do ranger da cama – que se incomodava a cada batida do meu coração fraco –, ora por conta dos latidos insones. Rompi horas escrevendo umas poucas frases na minha cabeça, torcendo para que você as achasse brilhantes. Perdido nas entrelinhas de um poema inventado percebi que só dormiria se pensasse em você (ainda hoje pensar em você é como uma droga que aguça meus sentidos, amolece minha razão e rouba meu discernimento): principiei pelo teu perfume de anis, segui pelo lilás das suas unhas e me embarafustei pelos teus cabelos desgrenhados, rolei até teu umbigo, onde, num movimento brusco de tosse, fui jogado de volta para o lençol.
Entrei num estado torpe de sonolência pouco depois de rememorar nosso casamento. Lembrei dos dias em que adquiri o hábito de deixar no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, textos meus, ou trechos de livros que julgava bonitos, ou mesmo rimas das músicas que ouvia você cantando baixinho no chuveiro, trocando as letras, confundindo as melodias. Achava graça quando seus amigos diziam que meu talento se resumia a copiar frases de impacto e lamber teus pés. Sempre esperei que dissesse algo em defesa do meu gosto poético ou preferência por pés. Você bebericava sua piña colada e pedia para que falássemos doutra coisa. Paguei, seguindo conselhos de sua irmã, um revisor para consertar meus textos. Ao lê–los revisados não os reconhecia, principalmente aqueles que o revisor fazia questão de assinar na condição de autor e enviar escondido para você. Rapidamente acabaram meus textos e meu dinheiro; decidi revisar os parcos textos que restaram sozinho e mandá–los para que lesse escondida, como fazia com os outros.
Assistindo ao mesmo filme todas as noites e recontando nossa história pelas manhãs apliquei tudo o que aprendi de edição e revisão de textos: comecei por revisar meu cheiro, segui por minha cueca, continuei por todas as minhas roupas, fotos três por quarto perdidas na carteira; revisei minha identidade e meus nomes, a chave do carro, as gravatas suspensas na porta do armário. Rasurei o meu passado e o meu presente, mudei meu tempo verbal para o futuro do indicativo; entre parênteses deixei abismos a serem preenchidos por verdades, inventadas, verdades mesmo assim. Apaguei tua risada das beiradas do que restava da minha folha em branco e rabisquei o endereço da nossa casa; troquei o número de nosso telefone por uma garganta seca e nosso cachorro por um bem–te–vi. Só aquele medo de ser feliz que não soube onde colocar: deixei-o espalhado por aí.
Aprendi que escrevia melhor tduo troto e que talevz foses uam boa idiea dexair mues tetxos em exopçisão na slaa do psinacalsita da mihna muhler, para que ele diag que é tduo atre plea arte, plea atre, plaa morte. A arte é a rdeneção da lama agrarada aos ossos. As lteras dnaaçm bolero melhor que as borboletas.
N0t4 m3nt41, 45 l3tr4s d4nç4m m3lh0r qu3 4s b0rb0l3t4s.
No rodapé fiz constar minha última nota: ainda temo essa história de ser feliz, especialmente na iminência do teu sorriso.
Amanhã voltarei; entregarei o manuscrito pra revisora, me livrarei de toda essa bagagem que encurva minhas costas e entrava minhas pernas. Voltarei a sujar a língua com a graxa dos teus sapatos, a desdenhar os arranha–céus feitos de nuvem e pássaros de grafite 0.5, pra descobrir de uma vez por todas, se é perigoso esse negócio de ser feliz. Você me dará tua espádua congelada a qual beijarei enquanto penso em trechos para copiar e deixar assim que amanhecer no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, misturado com páginas e mais páginas do fruto do meu refúgio e desenhos insones, feitos num bloco amarelo e sem linhas, do teu corpo nu.

domingo, 7 de agosto de 2011

Cântico Noturno - Ricardo Bruch

Há um grito que saí dos ventos e bagunça meus cabelos, o mesmo que anuncia o fim do mundo. É fugindo dele que, todo dia, à mesma hora, vou para a ponte em busca de silêncio.

Eram duas ou três horas da manhã, o som dos carros embaralhava distâncias, ora soavam perto, ora distantes demais. Não havia luz. As vigas de concreto, o asfalto esburacado eram identificados graças aos carros que passavam e seus faróis confirmavam. Havia uma silhueta exatamente no lugar onde eu deveria estar:

- Desce daí seu maluco!

A princípio achei que gritaram para mim, depois entendi que era para a figura cuja cabeça quase tocava os joelhos, bem na beirada da minha ponte, que é como a porta de entrada para o rio: meu cemitério de lágrimas particular.

Toda noite esse rio tem como pano de fundo o mesmo horizonte apagado. A lua foi engolida por nuvens carregadas de tristeza.

Na verdade, pouco me importa a paisagem ou o eco dos motoristas, quero apenas meu silêncio.

Aproximei-me lentamente do meu lugar e descobri, graças ao persistente movimento dos carros e seus faróis, que se tratava de uma mulher; tanto faz se fosse alta ou baixa, morena ou loira. Prostrados todos somos iguais. Ao seu lado pude notar: chorava feito criança. Pequenas, as mãos mal cobriam o rosto, babava soluços pelas bordas da boca; senti uma vontade irresistível de acabar com todo sofrimento. E, alheio aos gritos dos motoristas, fiquei tão perto dela que quase nos tocamos. Ela se moveu apenas para arrancar algo do dedo esquerdo. Arremessou com tanta força para longe que por pouco não perdeu o equilíbrio e caiu definitivamente no rio.

Gritei de susto, e o pranto deu vazão a um pequeno riso, que, pelo tom, também parecia ser de criança.

Permanecia calado, simulando uma ausência que julgava necessária.

- Desce daí seu maluco!

Observava as sacolas plásticas nadando rumo a lugar nenhum; emaranhavam-se feito amantes dejetos e espuma.

Para minha surpresa algo gelado envolveu minha mão Eram seus os dedos:

- Me deixa chorar em paz.

Fiquei quieto, observando os ruídos da cidade ao nosso redor. Observava o rio com suas veias abertas, sangrando sonhos, lágrimas, geladeiras. Nesta hemorragia, corpos amorfos treinavam natação artística ao som do pranto dela, nos chamando.

- Desce daí seu maluco!

Apertei seus dedos com força, para que soubesse que continuava ali, por ela e, se pudesse, choraria também. Acontece que seu choro inibe o meu, abafa minha voz.

Pensei em pedir que fosse embora; se quiser pode deixar seus murmúrios e tristezas comigo, mas não volte mais aqui, vá embora, para sempre.

- Me deixa chorar em paz.

Ainda mais forte apertei seus dedos mortos, ela gemeu quando tentei soltá-los, ela, com mais força ainda do que eu havia apertado, me segurou.

Na tela negra do céu, as nuvens se multiplicavam; pensava por que é que lá longe as estrelas brilham e aqui não. Talvez, se eu me sentasse noutro lugar, noutra ponte, onde a lua não fugisse, nem as pessoas gritassem tanto, as coisas fossem diferentes.

Quem sabe eu tivesse até uma mulher que me amasse, que assistisse a novela enquanto me esperava para o jantar, vestida com uma camisola cor de rosa, e o corpo todo perfumado de pêssego, ou morango com champanhe.

Aí então eu poderia dizer:

- Com licença, que vou ver minha mulher,

e sair sem dar bola para o chefe.

- Com licença, que vou ver minha mulher,

para as pessoas da rua.

- Com licença, que vou ver minha mulher,

para estranhos, dentro do metrô.

Quem me dera poder dizer agora:

- Com licença, que vou ver minha mulher.

Logo vai ser manhã de novo, e o céu vai voltar a ser azul, pensei. Quis dizer que a felicidade passa, a tristeza passa, a sorte, o azar, tudo passa, fique calma, concluí:

- Um dia vai sarar.

E quando isso acontecer você vai se arrepender de ter enterrado suas lágrimas no meu cemitério, de ter segurado minhas mãos frias ou ter jogado seja lá o que foi que você jogou fora.

- Um dia vai sarar.

Ela respondeu:

- Até daqui a pouco.

Largou minha mão, sem violência, como um carinho, um afago, e projetou o corpo para frente, como se fosse alçar vôo, mas caiu pesada como âncora, profundamente, dentro do rio.

Olhei para baixo, bolhas apareciam na superfície e um cheiro renovado de merda tomou conta do ar.

- Desce daí seu maluco!

Não havia corpo algum.

- Vai sarar...

Deveria me jogar também? Deveria tentar salvá-la? Valeria a pena buscar um corpo sem nome, sem calor, sem vida? Um corpo que nunca me deixaria dizer:

- Com licença, que vou ver minha mulher.

É melhor fugir, correr, antes que alguém apareça.

Vou fingir que não conheço esse lugar, que nunca estive aqui, que não vi, nem ouvi:

- Me deixa chorar em paz.

É melhor ir embora, antes que alguém diga que fui eu quem jogou aquela pobre mulher no rio.

- Que vontade de ir para casa.

Desço da ponte, e piso firmemente com os dois pés no chão, um alívio me rasga dos pés à cabeça.

Faróis desvendam meu rosto pálido, contorcido por uma vontade louca de vomitar.

- Desce daí seu maluco!

A luz dos faróis invade impiedosamente meus olhos quando me volto para a avenida.

- Vai sarar.

Protejo-me, tentando caminhar com segurança, penso no que ela quis dizer com:

- Até daqui a pouco.

Que vontade de nunca ter estado aqui, de não ter conhecido essa mulher, de ter deixado que ela tocasse minhas mãos com seus dedos, de nunca ter dito:

- Vai sarar.

Desejei que nunca tivesse dirigido suas palavras a mim.

- Até daqui a pouco.

Os carros mantêm sua toada.

- Desce daí seu maluco!

Caminho cuidadosamente para não tropeçar em nada, não pisar em falso e cair no meio da pista.

Não consigo deixar de pensar naquela mulher, que nem sei ao certo se era de verdade ou um sonho.

- Que vontade de ir pra casa.

Os carros passam cada vez mais enlouquecidos, fugindo do amanhecer. A massa de vômito quase rompendo a barreira dos dentes e minha mão cada vez mais gelada.

- Vai sarar.

Dou um passo para frente, e nada, mais outro; cego, por culpa dos carros, sigo cambaleante.

- Com licença, que vou ver minha mulher.

Até que uma buzina penetra meu estomago e, junto à sinfonia, o grito esganiçado dos pneus; sinto meu corpo pesado, o sangue se perdendo.

- Que vontade de ir para casa.

Novas buzinas e passos, muitos passos; um calor invade meu rosto, novas vozes, barulho de pés, meu corpo amolecendo.

- Que vontade de ir para casa.

Meu corpo como que desossado, igual ao dos frangos espremidos nas geladeiras do supermercado.

Uma a uma, paulatinamente, as vozes se calam, pondo fim ao coral; sinto meu corpo coberto por sombras.

- Que vontade de ir pra casa.

Acima de todos, riscos de sol ameaçam iluminar a pista bem no ponto onde mãos se unem em sinal de prece, para que a última voz conclua, sem forças, solitária:

- Meu Deus, o que foi que eu fiz?

4:00 pm

Maria era pura satisfação quando entrou em casa, jogou a bolsa de qualquer jeito na cadeira, e tropeçou no pé da mesa. Por pouco não caiu de cabeça no sofá. Que festa maravilhosa, disse com dificuldades para acender o cigarro. Quando sai com os amigos de colégio fica assim, os olhos emanando essa luz vulcânica – eles sempre brilharam muito. Certamente falou com todo mundo, contou sua vida inteira em segundos e gargalhou até ficar vermelha por não conseguir respirar direito; gargalhou mesmo sem ouvir o que diziam os comentários. Em cada riso ouvia-se um resquício do seu, as pessoas comentavam o brilho dos seus olhos, e isso se prolongava até o final da festa. Ainda bem que não fui, eu digo, odeio os pés cansados de ficar em pé, meu estomago do avesso com o cheiro do cigarro, hálitos de bebida misturada com salgadinhos de ricota. Ainda bem que apenas fui te buscar, eu digo.

Maria não me dá bola. Ela gosta das luzes, do movimento, mãos apoiadas no cotovelo e a fumaça do cigarro a invadir os olhos de quem está ao lado; gosta dos pés atabalhoados, rostos amorfos por distantes lembranças, se apalpando sem pudor. Apaga isso, eu pedia, ela assoprava para o teto, agia como se todos os dias da sua vida fossem assim, regados à fumaça e vinho barato.

São quase três horas, vão a doer minhas costas, e eu mal comecei a escrever, eles mal chegaram em casa e têm tanta coisa para conversar da festa, da menina que engordou, outra que emagreceu e namora um homem com idade para ser seu pai. São três horas, em ponto. Eu sei por que minhas pálpebras só pesam assim às três horas.

Ainda não decidi como ele dirá que não suporta o estado no qual ela volta dessas festas, não gosta dos seus amigos desordeiros, e tanto faz se são os amigos que a acompanham nas mostras de arte ou reuniões, para ler poemas de Rimbaud; entoam em uníssono e braços em riste, como se fosse a coisa mais tocada no rádio ou hino de time de futebol. Como dirá que gosta do sofá, da televisão muda, de como a camisa azul desbotada fica bem no corpo dela e de como ela ri baixinho quando contam as estrelas na varanda, igual aos filmes que a fazem chorar.

São três horas, faz tempo que você está dormindo. Sei pelos movimentos involuntários do teu braço, que bateu em meu caderno, me fez errar e cortar a palavra “EXERCÍCIO” escrita no alto da folha; cortei também a parte na qual Maria repete: adoro essas festas, rindo e tirando o cabelo desordenado do rosto, enquanto ziguezagueia pelas as paredes do corredor; acompanho-a como um cão de guarda até o quarto, apagando as luzes que, por onde quer que passasse fazia questão de acender; perguntei se queria tomar banho. É tarde, posso fazer isso amanhã, ela disse.

Você é um idiota, ela diz, não sorriu uma única vez hoje, e eu tinha dito que você tinha senso de humor. Sento na cama, tiro meus sapatos, ela acende mais um cigarro. Seu corpo tão próximo do meu, mas o espírito continua na festa, com aquela gente que não dorme e perde horas admirando rabiscos acidentais de tinta colorida numa tela muito maior do que o necessário, falando de como beltrano vive bem apenas pintando seus nus impressionistas e, principalmente, de como eu era um idiota sem senso de humor.

- Você não vai dormir?

Se virou e puxou o lençol para a altura dos ombros, cobriu os braços nus, lisos, quentes, só para me deixar pensando como seria bom apagar a luz e deitar ao seu lado, me entorpecer no cheiro doce do teu xampu, esquentar minhas mãos nos teus braços nus, lisos, quentes, mas fico aqui, com as costas doendo, às três da manhã, escrevendo braços nus, lisos, quentes como se escrever fosse o mesmo que sentir, como se escrever fosse o mesmo que viver.

Você é um idiota.

Olhando seus braços, nus, lisos quentes, me contive para não arrancar sua blusa e sua calça, arremessar o maldito cigarro no chão, beijar seu pescoço, te render e fazer rir, assoprando na sua barriga, igual se assopra na barriga de um bebê, e depois beijar todo seu braço nu, liso, quente, fazer você cair da cama, rolar no carpete, implorar pelo amor de Deus, pára, por favor, e brincar com teus cabelos nos intervalos, babando todo seu pescoço, para quando se acalmasse, voltar a assoprar suas costelas, suas costas e você rir, se sacudindo inteira, pelo amor de Deus, pára, por favor, só pra eu ficar feliz ao ouvir seu riso conhecido, seu riso que é meu. São três horas da manhã e você fuma de costas para mim.

O lençol se move convidativo. Encaro a folha branca do caderno, não gostaria de parar agora. Posso deixar para terminar amanhã; faz tempo que não são três horas, e outra, daqui a pouco o texto vai ficar desordenado, vou perder o fio da meada, me embaralhar entre nomes, falas, as palavras vão se atrapalhar, até não ter certeza se estou de olhos abertos ou não. Minhas costas doem. A caneta fincada feito estaca num ponto final suplica para eu continuar.

Depois de apagado o cigarro você disse amor, apaga a luz, e vem dormir vai. Disse tirando a calça, deixando-a no chão, entre as cinzas da madrugada que corre em suas veias. Se inclinou para pegar a blusa do pijama caída ao pé da cama; meu coração deu para bater mais rápido, vi sua calcinha cor de rosa, suas pernas nuas tão próximas de mim, incitando minhas mãos. Por que é que você está me olhando assim? Nem vem, estou cansada, você disse; tirei minha calça sem desviar os olhos do seu corpo escorregando para debaixo das cobertas. Improvisou um bocejo, um sono que não estava na ponta dos seus olhos há segundos atrás.

- Amor, apaga a luz e vem dormir, vai.

Penso numa saída, as coisas se misturam. Como continuar? Minha cabeça pende para os lados, a caneta cai no chão, faz barulho, incomoda teu sono. Peço inaudíveis desculpas. O peso das minhas pálpebras totaliza uma tonelada; por quanto tempo vou agüentar? São quase quatro horas e, no papel, frases que mal consigo acompanhar, amor apaga essa luz por que é que você está e vem dormir, você é um idiota estou cansada por que é que me olhando assim, nem vem estou cansada, Amor apaga e nem vem madrugada.

Esfrego os olhos e, sem saber direito o que estou fazendo, avanço em seu corpo de sombra, beijo seu pescoço, brinco com a orelha, você permanece imóvel debaixo do lençol, aperto seus braços nus, lisos, quentes, você murmura não, vamos dormir, chega, retiro lentamente o lençol, esfrego minha cabeça no seu peito, aproximo minha boca da sua barriga e assopro com toda a força. Você pula, estremece, resiste, grita, ri feito doida, pelo amor de Deus, pára, por favor, e eu assopro sua costela, treme seu corpo inteiro, e você berra, se contorce na cama, tenta afastar minha cabeça, puxa meus cabelos, pelo amor de Deus, pára, Alberto.

Alberto?

Al-ber-to?

Alberto?

Quem diabos é Alberto?

A luz do abajur me atrapalha, vou desligá-lo de uma vez e continuar amanhã, na varanda, debaixo do sol, talvez depois do café, das torradas, de você perguntar: dormiu bem? Você foi dormir tarde ontem.

São quase quatro horas da manhã. O lençol continua em movimento, sua respiração está distante, deve estar perdida no tempo, ao redor da lua, me observando pela janela; sou contaminado pelo seu cansaço, sono justo e puro; minhas pálpebras se recusam a se abrir. Quanto tempo posso agüentar?

São quase quatro horas, as coisas devem chegar ao fim, não por mim, por ele, se perguntando quem diabos é Alberto, ergue a mão e prepara para atingi-la num golpe cego e seco. Maria se protege, cai no chão, engole o grito por socorro; o ponteiro invisível dos minutos pesa tanto quanto minhas pálpebras. Resta a impressão que o tempo parou dentro do quarto.

- Amor, apaga a luz e vem dormir, vai

Pulei da cama e me joguei em sua direção. Meus pés estão dormentes, suas coxas tão lindas, quem diabos é Alberto, o sono começa a me aniquilar, um cansaço final, seus braços nus, lisos, quentes, vontade de agarrar seu pescoço, assoprar na tua barriga, o lençol se move lentamente, o ponteiro pesa mais e mais e ela sem saber quem é Alberto, sem saber se terá que pegar suas roupas do chão, esperar o elevador sozinha no corredor. Eu te encaro na penumbra do quarto, separados pela cama; ofegante, minha boca cheia de perguntas e a tua cheia de silêncios, quem diabos é Alberto? Seus olhos reluzentes de medo, feito os de um cachorro assustado ante o dono com um pedaço de pau na mão. Seus olhos sempre brilharam demais. Quem diabos é Alberto? Ela sem saber de onde saiu aquilo. O silêncio me afunda na cama, no cansaço, a caneta pula dos meus dedos e volta para o chão, a claridade incômoda do abajur, o ponteiro acaba de marcar quatro horas, o peso insuportável das pálpebras às quatro horas, um peso que não tenho mais forças ou condições para resistir.