quarta-feira, 9 de março de 2011

A sala do médico




Ainda bem que pintaram essas paredes de azul, que tiraram o branco e aproveitaram para levar os sofás antigos, certo que agora ninguém mais vai ficar aqui na minha frente, lendo revistas velhas e olhando no relógio a cada hora que passa. A espera me trás lembranças de brotarem gotas enormes de suor às minhas costas e de fazer meu corpo tremer e me perder no tempo e no espaço de mim. Tudo ficava muito pior com as paredes brancas, aquela gente e eu apenas repetia baixinho

- não sei quanto tempo vou agüentar,

ao invés de dizer

- Sebo Boa Esperança, em que posso ajudar?

Não conseguiria me mover ou pensar no preço dos discos, dos jornais, tanto faz que tivessem etiquetas diante de mim, tudo era aquela sala branca e o sofá, as pessoas a espera, olhando o relógio, contando os minutos, esperando como um dia esperei ao lado dele, o doutor chamar-nos para dentro

- Vamos, Senhor Alberto?

O Senhor Alberto a olhar para mim, esperando que eu me levantasse também, antes que o médico dissesse vamos, antes dele, não vê que o doutor está chamando? Não movi um músculo e vi como ele se arrastou para dentro da sala, que de onde eu estava podia distinguir apenas os pés gelados da cama de metal, até que o médico e sua voz perguntou:

- A senhora não vem?

Não tive coragem de dizer não, simplesmente não, apenas balancei o rosto, tremendo, estranhando aquele sorriso intruso nos lábios, camuflado com a branquidão das paredes.

Antes mesmo que fechasse a porta, eu já comigo mesma

- Não sei quanto tempo vou agüentar.

Não sei dizer se de fato se agüentei, se não fui eu que saí pálida da sala, sem saber o que dizer, sem saber porque o médico se escondia atrás da porta, despedindo-se com um aceno tímido, engolindo o sorriso que há sei lá quantos minutos atrás ostentava como um bilhete premiado de loteria, não sei quanto tempo agüentei e quantas vezes me perguntei

- Não sei quanto tempo vou agüentar,

Quantas pessoas entraram, sentaram ao meu lado, folhearam as mesmas revistas dos que ficavam sentados no sofá olhando o relógio com a mesma freqüência, quantas vezes o telefone tocou e a secretária atendia

- Consultório médico,

Com uma animação que eu não tenho quando atendo

- Sebo Boa Esperança.

Ainda bem que pintaram as paredes de azul e trocaram os sofás de lugar, assim não me lembro de como suas mãos estavam geladas e de como seu rosto pálido. Nunca vou me esquecer do olhar absorto pelas paredes e a mudez que foi rompida quando a porta da sala do médico abriu e ele chamou outra pessoa

- Moça, quanto custa esse livro?

O segurava, virava, mirava-o como se nunca tivesse visto nada parecido antes, como se ela mesma tivesse feito a pergunta em outro idioma, ou tivesse perguntado

- Vamos?

Mas sem o sorriso, sem as rugas que surgiam ao redor dos olhos, sem o gel no cabelo, sem saber responder a pergunta e a mocinha a me olhar esperançosa ou ao relógio cada vez que eu girava o livro em minhas mãos, sem notar a etiqueta branca, na primeira página, me assustando quando a menina arranca o livro das minhas mãos, descobrindo a etiqueta com o preço na primeira página.

- Não sei quanto tempo vou agüentar.

Ainda bem que aquelas paredes brancas não estão mais aqui, isso facilita que eu volte a ter atenção e torcer para que da próxima vez que alguém me perguntar

- Moça, quanto custa esse livro?

Eu não voe embalada pela memória a um lugar que me faz derramar lágrimas disfarçadas de silencio. Ainda bem que tiraram o sofá, as pessoas, as revistas, para que eu possa viver o dia em si, ver rostos diferentes, não afundados nas revistas; há aqui apenas o mesmo velho, que fica horas vendo as capas dos discos, o rosto das cantoras, encara algumas com tanta paixão que às vezes acho que vai beijá-las, sem perceber que é o plástico, pó, papel, tal qual eu não percebi, quando chegamos em casa, que os talheres não nos encaravam, nem os pires, ou os azulejos, que graças a Deus não eram brancos, e se perguntavam o que havia que o meu marido, que nunca bebeu, tomou quase num segundo a única garrafa de pinga que tinha em casa.

De repente o velho escolhe a capa do disco, e leva o disco abraçado, sem colocar numa sacola. Quando ele sai me deixa aqui para torcer sozinha que as paredes não fiquem pálidas de novo, que ninguém saia de alguma sala escondida para me perguntar:

- Vamos?

Eu sem saber o que responder, sem saber se é pior ficar aqui, me perguntando

- Quanto tempo será que vou agüentar?

Será que deveria ter entrado com ele, ter impedido que suas mãos ficassem geladas, ou que todo seu corpo tremesse angustiado. É possível que se eu estivesse ao seu lado, ele não chorasse quando o médico disse:

- infeilzmente...

Fingindo que era a primeira vez que dizia isso para alguém, fingindo que apesar de tudo, fez-se o que se pode.

Aposto que se estivesse com ele, não teria as capas das revistas tatuadas na cabeça, nem aversão à paredes brancas e sofás de quatro lugares. Certamente nem estaria aqui, me confundindo toda quando o telefone toca. Com certeza não atenderia

- Consultório médico,

Quando na verdade deveria dizer

- Sebo Boa Esperança,

De preferência, sem lágrimas na voz.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Stand up poetry




Eu quero ser um verso partido,
um haiku quebrado,
um violão sem corda,
a lista é longa.

Deixa que eu seja direto,
uma flecha entre nós,
o chão que você pisa,
os cacos partidos de um vaso qualquer.

Deixa que eu seja a gota da chuva
na lente dos teus óculos,
a coceira no meio das costas,
a vontade lasciva por chocolate.

Quero ser esta noite o gosto pelas coisas belas
o teu corpo no box do chuveiro
escondido pelo vapor.

Deixa eu ser o amor.


Antes que me torne aquela saudade,
a porta aberta da rua,
a vontade de ir para casa,
a folia tranquila de uma madrugada
terça de carnaval.

R.B.