quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Lembranças

Aí então eu me levantei com as costas doloridas, pesadas de tanto carregar recordações; já não tinha nada para dizer quando os garçons se atrapalharam com nossos pedidos e fomos obrigados a encarar a fome de outro casal; pedi ao garçom que deixasse o vinho branco porque sei que você não gosta. Deixe tudo meu caro, deixe tudo exatamente como está.
Diante de nós uma refeição inteira que não é nossa e nem poderia ser, pois não sentimos mais fome um do outro. Somos dois estômagos vazios, dois esqueletos roendo o próprio osso.
De pé, antes de sair, procurei por entre mesas qual aguardava a comida, ou reclamava para o garçom que a bebida estava atrasada. Procurei por um casal ansioso para dividir o vinho branco gelado, os talheres e os lençóis.
Fui para a saída achando graça na forma violenta que minhas pernas usaram para me erguer. Só assim, com o ruído da cadeira quase caindo ao chão, consegui romper seu silêncio e ouvir a sua voz abismal: O que é isso?
Meu pedido de desculpas esvaeceu entre os dentes, num sorriso de cãibra, amarelado; parti deixando minha jaqueta na cadeira e o garçom a se perguntar por que tudo tem que acabar assim.
Apressado, buscava pelos bolsos da calça as chaves do carro; encontrei apenas recibos, notas, lembretes. Às vezes tenho a impressão de que meus bolsos são como tumbas violadas: neles só se encontram restos e poeira, nunca os mortos. Onde foram parar as malditas chaves?
Num ato desesperado, no bolso da minha camisa, todo amarrotado, encontrei um pedaço de papel cujo timbre era idêntico ao do boné do manobrista. Entreguei-o e paguei a taxa do estacionamento, com a impressão que dei mais do que devia.
Entrei no carro, ansioso para ir embora mesmo sem ter pra onde ir. Evitei olhar o banco do passageiro, mas fui traído pela memória das minhas mãos e, quando dei por mim, estava tateando o banco em busca das suas pernas; acariciava-o como se fosse um cachorrinho perdido.
Ligo o rádio e dou a partida. Partida para onde?
Na minha frente você entra num taxi. Não me procura; simplesmente entra e senta no banco de trás do carro branco.O taxista pergunta:
---- Para onde?
Em uníssono respondemos:
---- Não sei.

Um comentário:

Mônica Cadorin disse...

Oi, Ricardo
Vim aqui ver como você escreve. Gostei do seu estilo. Fiquei com sensação de rodopio: o conflito vai e vai e na verdade não se resolve (li os seus textos daqui até setembro passado). A caracterização é sutil, informa detalhes mas a personagem sempre fica obscura como a narrativa do que ela está vivendo. Que bom que você vai publicar seus contos em livro. Está na hora mesmo: você tem uma escrita madura de quem sabe o que está fazendo, por mais que às vezes possa ter alguma dúvida se o caminho é esse mesmo.
Legal, venho mais vezes ver se tem novidades.
Um abraço
Mônica