quinta-feira, 4 de junho de 2009

Palavras-Cruzadas

Minha alma, com passos vagarosos,
vadia pelos postes de luz da Praça da Sé
Minhas mãos não sentem o frio do metal.
Tudo é uma variação dos tons laranja e branco que emanam
das lâmpadas suspensas como estrelas sorridentes.

O chão é laranja, a grama, os olhos;
as palavras que intentei dizer emudeceram
quando supliquei para que saíssem.
Deixaram na porta da geladeira
melosos bilhetes de despedida.

O chão está gelado e um calafrio percorre meu corpo.
O silêncio é um deleite que só se ouve no fim do mundo.
O silêncio é o apocalipse do amor,
escrevi isso num guardanapo uma vez.

Antigamente os ponteiros dos relógios
não se dissolviam em traços luminosos
de um relógio despertador.
Alarme.

O tempo um dia foi sincero.
Lembro que durante muito tempo fui cúmplice
do ponteiro dos segundos;
Vivemos juntos quase cento e vinte e nove mil toques.
Estalos.
Cento e vinte e nove mil palavras trocadas,
cento e noventa e nove mil golfadas de sangue para o corpo inteiro.
Até que decidi gritar as palavras mais absurdas
para os postes de luz da Praça da Sé.

O sino toca na minha mente;
com o eco uma reminiscência de Victor Hugo pousa
as mãos no meu ombro;
Um querubim abraçado a uma cigana debaixo da terra.

Numa festa alucinógena do interior de São Paulo
eu descobri o que era um coreto e
nele cantei em homenagem aos Serafins com asas feitas de fumaça
de escapamentos de Chevette.
Foi num coreto que observei um carnaval de rua
sambar descalço na superfície dos teus olhos.

Tenho uma saudade imensa dessa cidade
inominada do interior de São Paulo.
A luz não era laranja, era amarela,
graças à fogueira que mantínhamos viva
com peças de roupa e diários apócrifos de santos inexistentes
que vomitavam com o lirismo suburbano de donas-de-casa especialistas em palavras-cruzadas.

Objeto pontudo, capaz de dilacerar qualquer pessoa com um único movimento,
contendo sete letras na vertical.
O maior sonho do ser – humano em cinco letras na horizontal,
de braços dados com o pôr-do-sol de Kawabata.

As luzes alaranjadas subitamente
me abandonam na escadaria da Praça
e criaturas acordam.
Vestem-se como um dia gente se vestiu,
andam como um dia alguém andou.
Elas têm cheiro de vida in vitro.
São meus anjos da guarda
que em noites invernais dormem
abraçados debaixo do arco-íris bicolor.
Eles me privilegiam com seus
sorrisos de constelação perdida.

Uma lágrima foge dos meus olhos,
é beatificada ao tocar o chão da entrada da catedral.

Tomo um trago do líquido extraído
diretamente da latrina de Deus.
Me sinto melhor.

A lembrança de um rosto parecido com o meu
estampa a capa dos jornais,
passa rolando enquanto os pastores do apocalipse
desenham seus círculos no chão.
Um dia eu ganhei dinheiro
me valendo do suor que escorreu dessas mãos,
tocaram oboé em algum banheiro público,
agora elas apontam para o céu indicando o meteoro de rosas
entregue por Dante na forma de buquê.

A carne é impura,
diz um bilhete grudado na sola do meu sapato.

Sigo meu caminho rumo ao Páteo do Colégio
mesclado às sombras
me misturo com bustos feitos à base de cera de ouvido.

Sento-me na cadeira, a plaqueta indica um nome que não reconheço
A janela está sempre aberta e por ela bato as asas.
A estação do metro Bela Vista me brinda
com clímax dos restaurantes por quilo
e gordas satisfeitas desenhando
caricaturas na minha comanda.
Os carros cantam boleros o dia inteiro;
as pessoas concentradas demais para dançar
marcam o tempo com os pulmões.

Eu tenho um compromisso.
Um compromisso com o nascimento.

Sinto a presença de pessoas à minha volta,
me observando como se eu estivesse
com as tripas sorrindo para a câmera do fotógrafo;
os repórteres do jornal das oito mal piscam.
Uma dor pungente no peito
Silêncio grita pelos corredores dos hospitais
as muletas são usadas como tacos de beisebol
por crianças na maternidade.

Sussurros ensurdecedores,
dicotomia imbecil e ressaca pós-moderna.

Que suplício ouvir o coração bater!
Que fazer quando não puder mais senti-lo?
Palavra que pode ser usada no sentido de morte ou resultado,
contendo três letras na horizontal.
Espaço de tempo que decorre do nascimento até a morte,
com quatro letras na vertical.
Valendo mil lembranças
em forma de sonhos mordidos.

André Freitas

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