sexta-feira, 24 de julho de 2009

Ler e Escrever

Essa não é a primeira vez que alguém me fala que não consegue ler nada enquanto escreve. Simplesmente senta na cadeira, bate nas teclas, preenche as páginas com letras, enche o estomago de café e bate mais nas teclas, irremediavelmente gastas. Mas e depois, eu pergunto, e depois que já cansou de escrever e espremer a cabeça como se fosse uma tangerina, não lê nem uma palavrinha, nem uma letrinha? Não. Nada.
Meu primeiro pensamento é considerar esse discurso como bullshit. Só pode ser bullshit. Este fulano está se aproveitando da minha inexperiência e quer dificultar meu sucesso – prepotente, não?
Estou completamente convencido de que é impossível você sentar a bunda na cadeira e escrever sem ter lido uma linha sequer de um outro autor. A pessoa pode ler trinta livros num mês e começar a, finalmente, escrever no mês seguinte. De nada vai adiantar ter lido os trinta livros. Ouçam o que eu lhes digo, amigos. D-e n-a-d-a v-a-i a-d-i-a-n-t-a-r t-e-r l-i-d-o o-s t-r-i-n-t-a l-i-v-r-o-s. Isso porque, ler enquanto escreve é a chave de tudo. É permitir que a válvula da criatividade role solta e desça a ladeira até se chocar com alguma velhinha ou cachorro de rua.
É preciso ler alguma coisa para escrever, não se escreve música sem ouvir música, não se dança deitado, não se escreve sem ler. Faz parte do processo.
O próximo passo desse discurso sem eira nem beira, inteiramente motivado pelo saquê misturado com miojo + salsicha + ketchup é, bom ainda não sei qual é. Não estou lendo nada no momento, logo, poucas idéias para copiar ou desenvolver.
Essa abstinência de literatura será minha ruína.
Se eu fico quatro dias sem ler nada começo a perceber que a vida talvez – vejam bem: talvez – seja uma merda. Eu vejo que as paredes de concreto na minha frente não tem tanta graça quanto teriam diante dos olhos da Agatha, os transeuntes não são tão interessantes quanto aqueles que o Sr. Dickens imortalizou. O pior: meu quarto, que tem muito mais coisa que o quarto do Ródia, não desperta nada em mim.
Por mais que os personagens não falem, por mais longo que seja o discurso, é muito mais interessante do que qualquer coisa que eu, ou você, nobre leitor, poderemos produzir. Então, o que fazer? Ler, oras. Ler.
“Não vai ler nada, meu amor?” Pergunta minha mulher segurando o controle da televisão, esperando a novela começar. “Não” respondo. “Hoje vou ver a novela com você”. Percebo que seus olhos – apenas seus olhos – se movem e me olham de soslaio, como se eu estivesse drogado ou algo assim, não diz nada. “Deve estar louco. Alguma coisa aconteceu” pensa. Ela pega a almofada do sofá e a pressiona em seu colo, preparando-se pra qualquer loucura que eu possa cometer. Afinal, estou louco, vai começar a novela e eu não vou ler nenhum livro.
“Você quer a minha revista?” Ela pergunta. “Não, vou ficar com a novela mesmo”. A almofada se dobra em seu colo, fruto de um ataque de nervosismo? Não importa, os personagens na tela se movem com uma naturalidade de chimpanzés andando de skate. Tudo tão natural quanto a cesta de frutas que temos na mesa da sala, aquela que meu avô toda vez que nos visita tenta abocanhar e racha o pivô da dentadura. “Mas eu te amo!” grita o galã da novela, com olhos esbugalhados e mãos na cabeça.
“Se ela também ama ele, pra que exagerar tanto? Pra que gritar? Todo mundo grita nessa novela?” Minha mulher não responde, tenho minhas dúvidas de que ela está até mesmo respirando. “Amor? Se eles se amam e estão juntos, porque ele está gritando e se descabelando por ela?” repito. “Shhhhhh” é a minha resposta. “É isso que eu ganho por querer entender um pouco do que está acontecendo? Quando você me pergunta por que a Ana Karenina está tão triste eu pauso filme e te explico”. Vejo a barra do volume crescendo vertiginosamente e minha voz sendo abafada pela voz gritada de qualquer personagem.
Saudades dos meus livros, silenciosos, vozes no volume certo, gestos críveis. Flagro-me pensando no motivo pelo qual parei de ler.

Esse negócio de não ler nada ainda vai me matar.

“Já que não estou lendo nada, é melhor que eu escreva. Se dá certo por outros, deve dar pra mim também”. Pego meu notebook. Ponho um nome qualquer no começo da tela, à guisa de inspiração e começo. Minha mulher fica aliviada por que não terá mais ninguém para perguntar as coisas enquanto os personagens da novela se beijam na frente da borracharia. Tec tec tec tec tec. Me sinto voando. Imagens vivas, personagens, diálogos, tec tec tec tec tec.
Paro. Leio as quatro páginas que escrevi. Mesmas coisas que escrevo quando estou lendo. Mesmas situações, mesmas posturas, mesmos diálogos sem pé nem cabeça. O lirismo ficou um pouco mais pobre, notei. Como eu previa: bullshit.
“Onde você vai?” pergunta minha mulher, vendo que coloco meu casaco; pego as chaves do carro e rumo em direção à porta.
“Vou pra livraria. Quero escrever um livro.” Respondo e fecho a porta atrás de mim; do corredor ouço o personagem principal da novela gritando: “Quantas vezes eu devo repetir? Eu te amo!”. Imagino suas mãos à cabeça e olhos marejados. Se bem me lembro este ator se vangloria por não ver filme algum enquanto participa da novela: "não vejo nenhum outro ator que admiro quando em períodos que estou atuando" ele diz. Percebe-se, pensei, entrando no elevador.

Um comentário:

Renata Santos disse...

Olá! Obrigada pela visita ao meu blog! Obrigada mesmo!
E que bom que tenha gostado das minhas crônicas. Escrever é mesmo muito estranho, às vezes. Descubro coisas a meu respeito das quais não sabia.
Bem legal esse seu texto aqui sobre ler e escrever. Pasme, peguei hoje mesmo, na biblioteca municipal um livro sobre o fazer literário: "Como se faz literatura" (Affonso Romano de SantAnna). E ele fala, entre outras coisas, sobre essa catarse, essa epifania que envolve o escrever.
Bem, vamos encerrar, porque, do contrário, o comentário fica maior que o seu texto!
Um grande abraço!

Renata Santos