domingo, 7 de agosto de 2011

4:00 pm

Maria era pura satisfação quando entrou em casa, jogou a bolsa de qualquer jeito na cadeira, e tropeçou no pé da mesa. Por pouco não caiu de cabeça no sofá. Que festa maravilhosa, disse com dificuldades para acender o cigarro. Quando sai com os amigos de colégio fica assim, os olhos emanando essa luz vulcânica – eles sempre brilharam muito. Certamente falou com todo mundo, contou sua vida inteira em segundos e gargalhou até ficar vermelha por não conseguir respirar direito; gargalhou mesmo sem ouvir o que diziam os comentários. Em cada riso ouvia-se um resquício do seu, as pessoas comentavam o brilho dos seus olhos, e isso se prolongava até o final da festa. Ainda bem que não fui, eu digo, odeio os pés cansados de ficar em pé, meu estomago do avesso com o cheiro do cigarro, hálitos de bebida misturada com salgadinhos de ricota. Ainda bem que apenas fui te buscar, eu digo.

Maria não me dá bola. Ela gosta das luzes, do movimento, mãos apoiadas no cotovelo e a fumaça do cigarro a invadir os olhos de quem está ao lado; gosta dos pés atabalhoados, rostos amorfos por distantes lembranças, se apalpando sem pudor. Apaga isso, eu pedia, ela assoprava para o teto, agia como se todos os dias da sua vida fossem assim, regados à fumaça e vinho barato.

São quase três horas, vão a doer minhas costas, e eu mal comecei a escrever, eles mal chegaram em casa e têm tanta coisa para conversar da festa, da menina que engordou, outra que emagreceu e namora um homem com idade para ser seu pai. São três horas, em ponto. Eu sei por que minhas pálpebras só pesam assim às três horas.

Ainda não decidi como ele dirá que não suporta o estado no qual ela volta dessas festas, não gosta dos seus amigos desordeiros, e tanto faz se são os amigos que a acompanham nas mostras de arte ou reuniões, para ler poemas de Rimbaud; entoam em uníssono e braços em riste, como se fosse a coisa mais tocada no rádio ou hino de time de futebol. Como dirá que gosta do sofá, da televisão muda, de como a camisa azul desbotada fica bem no corpo dela e de como ela ri baixinho quando contam as estrelas na varanda, igual aos filmes que a fazem chorar.

São três horas, faz tempo que você está dormindo. Sei pelos movimentos involuntários do teu braço, que bateu em meu caderno, me fez errar e cortar a palavra “EXERCÍCIO” escrita no alto da folha; cortei também a parte na qual Maria repete: adoro essas festas, rindo e tirando o cabelo desordenado do rosto, enquanto ziguezagueia pelas as paredes do corredor; acompanho-a como um cão de guarda até o quarto, apagando as luzes que, por onde quer que passasse fazia questão de acender; perguntei se queria tomar banho. É tarde, posso fazer isso amanhã, ela disse.

Você é um idiota, ela diz, não sorriu uma única vez hoje, e eu tinha dito que você tinha senso de humor. Sento na cama, tiro meus sapatos, ela acende mais um cigarro. Seu corpo tão próximo do meu, mas o espírito continua na festa, com aquela gente que não dorme e perde horas admirando rabiscos acidentais de tinta colorida numa tela muito maior do que o necessário, falando de como beltrano vive bem apenas pintando seus nus impressionistas e, principalmente, de como eu era um idiota sem senso de humor.

- Você não vai dormir?

Se virou e puxou o lençol para a altura dos ombros, cobriu os braços nus, lisos, quentes, só para me deixar pensando como seria bom apagar a luz e deitar ao seu lado, me entorpecer no cheiro doce do teu xampu, esquentar minhas mãos nos teus braços nus, lisos, quentes, mas fico aqui, com as costas doendo, às três da manhã, escrevendo braços nus, lisos, quentes como se escrever fosse o mesmo que sentir, como se escrever fosse o mesmo que viver.

Você é um idiota.

Olhando seus braços, nus, lisos quentes, me contive para não arrancar sua blusa e sua calça, arremessar o maldito cigarro no chão, beijar seu pescoço, te render e fazer rir, assoprando na sua barriga, igual se assopra na barriga de um bebê, e depois beijar todo seu braço nu, liso, quente, fazer você cair da cama, rolar no carpete, implorar pelo amor de Deus, pára, por favor, e brincar com teus cabelos nos intervalos, babando todo seu pescoço, para quando se acalmasse, voltar a assoprar suas costelas, suas costas e você rir, se sacudindo inteira, pelo amor de Deus, pára, por favor, só pra eu ficar feliz ao ouvir seu riso conhecido, seu riso que é meu. São três horas da manhã e você fuma de costas para mim.

O lençol se move convidativo. Encaro a folha branca do caderno, não gostaria de parar agora. Posso deixar para terminar amanhã; faz tempo que não são três horas, e outra, daqui a pouco o texto vai ficar desordenado, vou perder o fio da meada, me embaralhar entre nomes, falas, as palavras vão se atrapalhar, até não ter certeza se estou de olhos abertos ou não. Minhas costas doem. A caneta fincada feito estaca num ponto final suplica para eu continuar.

Depois de apagado o cigarro você disse amor, apaga a luz, e vem dormir vai. Disse tirando a calça, deixando-a no chão, entre as cinzas da madrugada que corre em suas veias. Se inclinou para pegar a blusa do pijama caída ao pé da cama; meu coração deu para bater mais rápido, vi sua calcinha cor de rosa, suas pernas nuas tão próximas de mim, incitando minhas mãos. Por que é que você está me olhando assim? Nem vem, estou cansada, você disse; tirei minha calça sem desviar os olhos do seu corpo escorregando para debaixo das cobertas. Improvisou um bocejo, um sono que não estava na ponta dos seus olhos há segundos atrás.

- Amor, apaga a luz e vem dormir, vai.

Penso numa saída, as coisas se misturam. Como continuar? Minha cabeça pende para os lados, a caneta cai no chão, faz barulho, incomoda teu sono. Peço inaudíveis desculpas. O peso das minhas pálpebras totaliza uma tonelada; por quanto tempo vou agüentar? São quase quatro horas e, no papel, frases que mal consigo acompanhar, amor apaga essa luz por que é que você está e vem dormir, você é um idiota estou cansada por que é que me olhando assim, nem vem estou cansada, Amor apaga e nem vem madrugada.

Esfrego os olhos e, sem saber direito o que estou fazendo, avanço em seu corpo de sombra, beijo seu pescoço, brinco com a orelha, você permanece imóvel debaixo do lençol, aperto seus braços nus, lisos, quentes, você murmura não, vamos dormir, chega, retiro lentamente o lençol, esfrego minha cabeça no seu peito, aproximo minha boca da sua barriga e assopro com toda a força. Você pula, estremece, resiste, grita, ri feito doida, pelo amor de Deus, pára, por favor, e eu assopro sua costela, treme seu corpo inteiro, e você berra, se contorce na cama, tenta afastar minha cabeça, puxa meus cabelos, pelo amor de Deus, pára, Alberto.

Alberto?

Al-ber-to?

Alberto?

Quem diabos é Alberto?

A luz do abajur me atrapalha, vou desligá-lo de uma vez e continuar amanhã, na varanda, debaixo do sol, talvez depois do café, das torradas, de você perguntar: dormiu bem? Você foi dormir tarde ontem.

São quase quatro horas da manhã. O lençol continua em movimento, sua respiração está distante, deve estar perdida no tempo, ao redor da lua, me observando pela janela; sou contaminado pelo seu cansaço, sono justo e puro; minhas pálpebras se recusam a se abrir. Quanto tempo posso agüentar?

São quase quatro horas, as coisas devem chegar ao fim, não por mim, por ele, se perguntando quem diabos é Alberto, ergue a mão e prepara para atingi-la num golpe cego e seco. Maria se protege, cai no chão, engole o grito por socorro; o ponteiro invisível dos minutos pesa tanto quanto minhas pálpebras. Resta a impressão que o tempo parou dentro do quarto.

- Amor, apaga a luz e vem dormir, vai

Pulei da cama e me joguei em sua direção. Meus pés estão dormentes, suas coxas tão lindas, quem diabos é Alberto, o sono começa a me aniquilar, um cansaço final, seus braços nus, lisos, quentes, vontade de agarrar seu pescoço, assoprar na tua barriga, o lençol se move lentamente, o ponteiro pesa mais e mais e ela sem saber quem é Alberto, sem saber se terá que pegar suas roupas do chão, esperar o elevador sozinha no corredor. Eu te encaro na penumbra do quarto, separados pela cama; ofegante, minha boca cheia de perguntas e a tua cheia de silêncios, quem diabos é Alberto? Seus olhos reluzentes de medo, feito os de um cachorro assustado ante o dono com um pedaço de pau na mão. Seus olhos sempre brilharam demais. Quem diabos é Alberto? Ela sem saber de onde saiu aquilo. O silêncio me afunda na cama, no cansaço, a caneta pula dos meus dedos e volta para o chão, a claridade incômoda do abajur, o ponteiro acaba de marcar quatro horas, o peso insuportável das pálpebras às quatro horas, um peso que não tenho mais forças ou condições para resistir.

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