sábado, 20 de agosto de 2011

Felicidade é lamber os teus pés

Estou cansado,
(das chuvas de papel, dos arlequins de fumaça e das letras de miasma)
definitivamente,
estou cansado.

Lá está ela (minha assinatura), meio escondida, meio cismada, caindo pelos cantos sem saber como se portar na frente de todo mundo. De onde estou posso vê–la (minha assinatura) encostada nas beiradas, desconfiando se o vestido que sugeri lhe cai bem. Segura a coceira e a vontade de espirrar. Não me encara nos olhos. Decidiu que não fala mais comigo por um bom tempo (minha assinatura); tudo por conta de alguns disparates que disse – completamente movido pela emoção – antes que chegasse, ignorando que algumas línguas, sem demora, correriam por todo o salão para me denunciar aos teus ouvidos (minha assinatura). Fui até onde estava, me fiz de desentendido, sorri e agradeci sua presença com muita cerimônia, feito um dândi copiado dos filmes que via na casa da minha avó anos atrás e que ela fazia questão de dizer: aqueles sim, eram homens de verdade (minha assinatura).
Acabo de concluir meu primeiro livro sem sentir aquela ânsia que dizem parecer com a chegada do primeiro filho ou do apocalipse sorridente nas mãos fumegantes do sol. Fui paciente a ponto de reler cada palavra umas dez vezes, de me orgulhar de muita coisa que não sei como pari e fazer vista grossa para tantas outras que não se aproveitariam nem para redação escolar; não foram suprimidas por conta da redução no preço dos trezentos exemplares, pagos por mim antecipadamente.
Não vou mentir e dizer que foi fácil ou que as palavras escorreram de mim como suor, como lágrima de vinho no bico da garrafa diretamente para tua boca. Passei dias perdido entre linhas geometricamente perfeitas, justificadas apenas para mim e palavras, muitas palavras, que não caberiam em nenhum dicionário do mundo. As maiúsculas se postavam na frente do grupo, feito um executor aguardando as minúsculas terminarem de se enfileirar, homogêneas, cabisbaixas, cônscias da bala surda do ponto final e do despropósito de sua existência.
Aos poucos, – com certo regozijo, devo confessar – fui arquitetando genocídios, crimes passionais, inauditos arrependimentos e perdões injustificáveis, todos amoldados com sonhos e letras do meu próprio punho. Inventei nomes, pigmentação de olhos e dentes que preenchiam bocas em itálico; decerto que menti, criei tramas e as anunciei como se fossem verdade, fiz com que acreditassem em tudo, em tudo! Contudo, não agi sozinho. Fui orientado por uma voz que se apresentou como guia, como cúmplice, mas, quando perguntaram de onde vinha ou o que fazia aqui, se calou como tristeza de mulher.
Minha jornada teve início com o eco do porta–malas se fechando, assobiando tua canção nos meus tímpanos a viagem inteira; fiquei agoniado, pois as árvores encurvadas na calçada davam à cena um ar de despedida; te procurei no espelho retrovisor, achei que estaria acenando o lenço invisível da saudade e que talvez, escondesse com muito esforço lágrimas temerosas de uma futura solidão. Via o asfalto pela metade, carros pela metade, via que seu jardim começava a florescer, que há dias não recolhia o jornal do chão e que você não estava lá. Deve ter corrido para atender o telefone, justifiquei em seu favor.
– Se você acha que ficar numa cabana vai te ajudar, pode ir. Por mim tudo bem.
Insatisfeito, queria novamente sua opinião. Tinha sede das suas teorias, comparações, diagramas. Houve períodos em que, zelosa, chegou a usar meu mapa astral como bússola para dar seus pitacos. Mas depois passou a imitar a postura do seu psicanalista – que não saía da tua boca e da nossa mesa de jantar –: cruzava as pernas, apoiava o queixo nas mãos e espremia os olhos feito dois limões à guisa de transformar em suco seu parecer, suco de: se é o que te faz feliz, vá.
– Acho muito perigosa essa história de ser feliz.
Me defendia, cerrava os olhos e beijava seu ombro gelado enquanto ornava metáforas para homenagear tua paciência e teu ronco de cocote francesa. Uma estranha sensação do psicanalista sentado na cabeceira, dividindo o bloco de anotações amarelado entre transcrições de nossas conversas e desenhos do seu corpo nu, me perturbava o sono.
Movido pelo barulho dum lápis imaginário pincelando teu corpo desnudo da camisola de seda, decidi ficar por uns tempos na cabana do meu avô, bem no interior da cidade, para concluir algumas frases que faltavam no meu livro e transpirar raciocínios que julgava brilhantes, porém ao seu lado ficavam tímidos e se negavam a sobressair. Aqui tenho distrações demais: suas coxas e seios lunares, as contas escondidas debaixo do capacho escrito welcome da porta da rua, as tardes fumando cigarros de névoa, esfumaçando a minha imaginação. Talvez seja melhor, talvez seja melhor ir para o interior.
– Vá, querido. Eu até pegaria teu mapa astral para confirmar algumas coisas, acontece que tirei ele da gaveta de cuecas e coloquei não sei onde.
A cabana cheirava a merda de cavalo; o único móvel servia de café da manhã, almoço e janta para traças e cupins; a cama se resumia a um estrado que só de encostar rangia de dor.
Logo nos primeiros dias senti o sangue correr nas minhas veias de morto–vivo em estado de graça, exibi para um espelho rachado os vãos entre os dentes de uma boa ideia quando a tinha. Cheguei inclusive a acostumar–me com a visão destes dentes amarelos por culpa do café sem açúcar e do cigarro. Isso num tempo em que achava que não conseguiria escrever mais nada.
Bastou que me afastasse das calotas machucadas de tinta, do telefone e do computador para perceber que minha vida se resumia a reticências enfeitando páginas do jornal, buscas por Modiglianis nos espaços públicos e dedos em riste da minha mulher, me lembrando que há uma vida por trás disso, desse negócio que não arrisco adjetivar e que chamam de literatura.
Toda vez que tocávamos nessa nota um diapasão rompia e eu orquestrava uma retórica em dó maior, balançando as mãos para dissolver seus pensamentos no ar, para afastar qualquer possibilidade congruente de defesa da minha parte; balançava as mãos como quem espanta mosquitos e libélulas recém–nascidas, só para não dizer que sabia que a literatura é um sonho sem voz, sem imagem, que não tem sequer talento para existir sozinha. A literatura é um gato cego e banguela que não se consegue alimentar – pois somos nós, sempre, que sentimos sua fome. E o pior, meu amor, é que eu sei, eu sinto no fundo da minha alma que esse gato títere desdenha minha atenção, meu carinho, minhas noites em claro. Por isso insisto em negar peremptoriamente minhas quedas abismais com doses homeopáticas – três vezes ao dia – de absinto, vinho barato e saquê; não quero ouvi–lo ronronar pelos cantos ao ver que padeço de uma fome que não é minha.
Conto com teus afagos espirituais quando voltar dessa sensação de sonho in albis, meu amor. Você não respondeu e, quando pensei em repetir tudo desde o começo fui atingido por uma seta feita daquelas libélulas recém–nascidas que descrevi antes e só servem para dançar jazz no meu peito retórico e fatigado de adjetivações.
Se é o que te faz feliz, vá. Se é o que te faz feliz, vá.
Pelas manhãs, emocionado com insetos que morriam no chão do meu quarto, num ato contínuo e inconsciente, como aquele em que se abre a boca para deixar o vômito romper a barreira dos lábios, meu lápis virou um extintor de serpentina e, sei lá por que o saquê ficou com gosto de suco de laranja, as páginas se consumiam por si próprias e o tempo voou sequestrado no bico de um canarinho.
Na minha cabeça, você, minha querida, é um anjo caído que me ergue ao vácuo dos céus oxidados, em oferenda ao Deus dos que sangram perpetuamente numa hemorragia impossível de estancar. Eu abro os braços em redenção porque sei que logo eu também terei um ponto final para me emudecer; logo, eu também serei apenas uma voz que se calará no momento oportuno, que saberá encontrar o caminho de volta às pernas escancaradas, à placenta, aos pelos, ao choro que sucede o primeiro tapa da vida, à primeira infância e que depois paulatinamente sufocará pelas cobranças, pelos chefes, pelas feijoadas e pastéis de queijo até morrer de sono num domingo ensolarado de Páscoa. Abro os braços porque gosto do barulho das mãos que se esbofeteiam, das folhas que se amassam e caem fora do lixo; gosto dos serafins baforando cachimbos de bola de sabão enquanto pinto minha alma com nanquim nas bordas do meu caderno infinito.
O que você está fazendo, perguntam os curiosos. Estou brincando de ser Nassar. Em coro vão dizer que não, não posso ser Nassar; não posso ser Dickens, Dostoievski ou Drummond. Não posso ser a letra D ou nenhuma outra. Não posso ser o sonho e o espírito desencarnado da solidão responsável pela alvura das paredes dessa cabana de esquecimento, não posso ser a inspiração e a transpiração, não posso ser nada além da insônia e do cheiro insistente de merda dos cavalos que nunca passaram por aqui. Se é o que te faz feliz...
Diz, o que é mesmo que você está fazendo? perguntam olhos injetados de curiosidade. Eu quero criar uma pessoa que come água como se fosse bolo de fubá, que toma saquê com gosto de suco de laranja; criar a possibilidade de se apreciar uma xícara de café sem açúcar e quero ao meu redor pessoas tenras, que se abraçam com sinceridade e acham graça quando digo que Macunaíma c´est moi...
Por muitos dias me deitei somente para dialogar com a vista alva dos olhos cerrados. Não consegui dormir um segundo sequer, ora por causa do ranger da cama – que se incomodava a cada batida do meu coração fraco –, ora por conta dos latidos insones. Rompi horas escrevendo umas poucas frases na minha cabeça, torcendo para que você as achasse brilhantes. Perdido nas entrelinhas de um poema inventado percebi que só dormiria se pensasse em você (ainda hoje pensar em você é como uma droga que aguça meus sentidos, amolece minha razão e rouba meu discernimento): principiei pelo teu perfume de anis, segui pelo lilás das suas unhas e me embarafustei pelos teus cabelos desgrenhados, rolei até teu umbigo, onde, num movimento brusco de tosse, fui jogado de volta para o lençol.
Entrei num estado torpe de sonolência pouco depois de rememorar nosso casamento. Lembrei dos dias em que adquiri o hábito de deixar no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, textos meus, ou trechos de livros que julgava bonitos, ou mesmo rimas das músicas que ouvia você cantando baixinho no chuveiro, trocando as letras, confundindo as melodias. Achava graça quando seus amigos diziam que meu talento se resumia a copiar frases de impacto e lamber teus pés. Sempre esperei que dissesse algo em defesa do meu gosto poético ou preferência por pés. Você bebericava sua piña colada e pedia para que falássemos doutra coisa. Paguei, seguindo conselhos de sua irmã, um revisor para consertar meus textos. Ao lê–los revisados não os reconhecia, principalmente aqueles que o revisor fazia questão de assinar na condição de autor e enviar escondido para você. Rapidamente acabaram meus textos e meu dinheiro; decidi revisar os parcos textos que restaram sozinho e mandá–los para que lesse escondida, como fazia com os outros.
Assistindo ao mesmo filme todas as noites e recontando nossa história pelas manhãs apliquei tudo o que aprendi de edição e revisão de textos: comecei por revisar meu cheiro, segui por minha cueca, continuei por todas as minhas roupas, fotos três por quarto perdidas na carteira; revisei minha identidade e meus nomes, a chave do carro, as gravatas suspensas na porta do armário. Rasurei o meu passado e o meu presente, mudei meu tempo verbal para o futuro do indicativo; entre parênteses deixei abismos a serem preenchidos por verdades, inventadas, verdades mesmo assim. Apaguei tua risada das beiradas do que restava da minha folha em branco e rabisquei o endereço da nossa casa; troquei o número de nosso telefone por uma garganta seca e nosso cachorro por um bem–te–vi. Só aquele medo de ser feliz que não soube onde colocar: deixei-o espalhado por aí.
Aprendi que escrevia melhor tduo troto e que talevz foses uam boa idiea dexair mues tetxos em exopçisão na slaa do psinacalsita da mihna muhler, para que ele diag que é tduo atre plea arte, plea atre, plaa morte. A arte é a rdeneção da lama agrarada aos ossos. As lteras dnaaçm bolero melhor que as borboletas.
N0t4 m3nt41, 45 l3tr4s d4nç4m m3lh0r qu3 4s b0rb0l3t4s.
No rodapé fiz constar minha última nota: ainda temo essa história de ser feliz, especialmente na iminência do teu sorriso.
Amanhã voltarei; entregarei o manuscrito pra revisora, me livrarei de toda essa bagagem que encurva minhas costas e entrava minhas pernas. Voltarei a sujar a língua com a graxa dos teus sapatos, a desdenhar os arranha–céus feitos de nuvem e pássaros de grafite 0.5, pra descobrir de uma vez por todas, se é perigoso esse negócio de ser feliz. Você me dará tua espádua congelada a qual beijarei enquanto penso em trechos para copiar e deixar assim que amanhecer no teu criado–mudo, aos pés do teu chinelo, misturado com páginas e mais páginas do fruto do meu refúgio e desenhos insones, feitos num bloco amarelo e sem linhas, do teu corpo nu.

Nenhum comentário: