domingo, 7 de agosto de 2011

Cântico Noturno - Ricardo Bruch

Há um grito que saí dos ventos e bagunça meus cabelos, o mesmo que anuncia o fim do mundo. É fugindo dele que, todo dia, à mesma hora, vou para a ponte em busca de silêncio.

Eram duas ou três horas da manhã, o som dos carros embaralhava distâncias, ora soavam perto, ora distantes demais. Não havia luz. As vigas de concreto, o asfalto esburacado eram identificados graças aos carros que passavam e seus faróis confirmavam. Havia uma silhueta exatamente no lugar onde eu deveria estar:

- Desce daí seu maluco!

A princípio achei que gritaram para mim, depois entendi que era para a figura cuja cabeça quase tocava os joelhos, bem na beirada da minha ponte, que é como a porta de entrada para o rio: meu cemitério de lágrimas particular.

Toda noite esse rio tem como pano de fundo o mesmo horizonte apagado. A lua foi engolida por nuvens carregadas de tristeza.

Na verdade, pouco me importa a paisagem ou o eco dos motoristas, quero apenas meu silêncio.

Aproximei-me lentamente do meu lugar e descobri, graças ao persistente movimento dos carros e seus faróis, que se tratava de uma mulher; tanto faz se fosse alta ou baixa, morena ou loira. Prostrados todos somos iguais. Ao seu lado pude notar: chorava feito criança. Pequenas, as mãos mal cobriam o rosto, babava soluços pelas bordas da boca; senti uma vontade irresistível de acabar com todo sofrimento. E, alheio aos gritos dos motoristas, fiquei tão perto dela que quase nos tocamos. Ela se moveu apenas para arrancar algo do dedo esquerdo. Arremessou com tanta força para longe que por pouco não perdeu o equilíbrio e caiu definitivamente no rio.

Gritei de susto, e o pranto deu vazão a um pequeno riso, que, pelo tom, também parecia ser de criança.

Permanecia calado, simulando uma ausência que julgava necessária.

- Desce daí seu maluco!

Observava as sacolas plásticas nadando rumo a lugar nenhum; emaranhavam-se feito amantes dejetos e espuma.

Para minha surpresa algo gelado envolveu minha mão Eram seus os dedos:

- Me deixa chorar em paz.

Fiquei quieto, observando os ruídos da cidade ao nosso redor. Observava o rio com suas veias abertas, sangrando sonhos, lágrimas, geladeiras. Nesta hemorragia, corpos amorfos treinavam natação artística ao som do pranto dela, nos chamando.

- Desce daí seu maluco!

Apertei seus dedos com força, para que soubesse que continuava ali, por ela e, se pudesse, choraria também. Acontece que seu choro inibe o meu, abafa minha voz.

Pensei em pedir que fosse embora; se quiser pode deixar seus murmúrios e tristezas comigo, mas não volte mais aqui, vá embora, para sempre.

- Me deixa chorar em paz.

Ainda mais forte apertei seus dedos mortos, ela gemeu quando tentei soltá-los, ela, com mais força ainda do que eu havia apertado, me segurou.

Na tela negra do céu, as nuvens se multiplicavam; pensava por que é que lá longe as estrelas brilham e aqui não. Talvez, se eu me sentasse noutro lugar, noutra ponte, onde a lua não fugisse, nem as pessoas gritassem tanto, as coisas fossem diferentes.

Quem sabe eu tivesse até uma mulher que me amasse, que assistisse a novela enquanto me esperava para o jantar, vestida com uma camisola cor de rosa, e o corpo todo perfumado de pêssego, ou morango com champanhe.

Aí então eu poderia dizer:

- Com licença, que vou ver minha mulher,

e sair sem dar bola para o chefe.

- Com licença, que vou ver minha mulher,

para as pessoas da rua.

- Com licença, que vou ver minha mulher,

para estranhos, dentro do metrô.

Quem me dera poder dizer agora:

- Com licença, que vou ver minha mulher.

Logo vai ser manhã de novo, e o céu vai voltar a ser azul, pensei. Quis dizer que a felicidade passa, a tristeza passa, a sorte, o azar, tudo passa, fique calma, concluí:

- Um dia vai sarar.

E quando isso acontecer você vai se arrepender de ter enterrado suas lágrimas no meu cemitério, de ter segurado minhas mãos frias ou ter jogado seja lá o que foi que você jogou fora.

- Um dia vai sarar.

Ela respondeu:

- Até daqui a pouco.

Largou minha mão, sem violência, como um carinho, um afago, e projetou o corpo para frente, como se fosse alçar vôo, mas caiu pesada como âncora, profundamente, dentro do rio.

Olhei para baixo, bolhas apareciam na superfície e um cheiro renovado de merda tomou conta do ar.

- Desce daí seu maluco!

Não havia corpo algum.

- Vai sarar...

Deveria me jogar também? Deveria tentar salvá-la? Valeria a pena buscar um corpo sem nome, sem calor, sem vida? Um corpo que nunca me deixaria dizer:

- Com licença, que vou ver minha mulher.

É melhor fugir, correr, antes que alguém apareça.

Vou fingir que não conheço esse lugar, que nunca estive aqui, que não vi, nem ouvi:

- Me deixa chorar em paz.

É melhor ir embora, antes que alguém diga que fui eu quem jogou aquela pobre mulher no rio.

- Que vontade de ir para casa.

Desço da ponte, e piso firmemente com os dois pés no chão, um alívio me rasga dos pés à cabeça.

Faróis desvendam meu rosto pálido, contorcido por uma vontade louca de vomitar.

- Desce daí seu maluco!

A luz dos faróis invade impiedosamente meus olhos quando me volto para a avenida.

- Vai sarar.

Protejo-me, tentando caminhar com segurança, penso no que ela quis dizer com:

- Até daqui a pouco.

Que vontade de nunca ter estado aqui, de não ter conhecido essa mulher, de ter deixado que ela tocasse minhas mãos com seus dedos, de nunca ter dito:

- Vai sarar.

Desejei que nunca tivesse dirigido suas palavras a mim.

- Até daqui a pouco.

Os carros mantêm sua toada.

- Desce daí seu maluco!

Caminho cuidadosamente para não tropeçar em nada, não pisar em falso e cair no meio da pista.

Não consigo deixar de pensar naquela mulher, que nem sei ao certo se era de verdade ou um sonho.

- Que vontade de ir pra casa.

Os carros passam cada vez mais enlouquecidos, fugindo do amanhecer. A massa de vômito quase rompendo a barreira dos dentes e minha mão cada vez mais gelada.

- Vai sarar.

Dou um passo para frente, e nada, mais outro; cego, por culpa dos carros, sigo cambaleante.

- Com licença, que vou ver minha mulher.

Até que uma buzina penetra meu estomago e, junto à sinfonia, o grito esganiçado dos pneus; sinto meu corpo pesado, o sangue se perdendo.

- Que vontade de ir para casa.

Novas buzinas e passos, muitos passos; um calor invade meu rosto, novas vozes, barulho de pés, meu corpo amolecendo.

- Que vontade de ir para casa.

Meu corpo como que desossado, igual ao dos frangos espremidos nas geladeiras do supermercado.

Uma a uma, paulatinamente, as vozes se calam, pondo fim ao coral; sinto meu corpo coberto por sombras.

- Que vontade de ir pra casa.

Acima de todos, riscos de sol ameaçam iluminar a pista bem no ponto onde mãos se unem em sinal de prece, para que a última voz conclua, sem forças, solitária:

- Meu Deus, o que foi que eu fiz?

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