quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A razão do meu silêncio - Ricardo Bruch


- Oi,

Liguei não sei porquê, não pergunte que de tanto fazer essa pergunta, virei eu mesmo a indagação, agora sou o

- Porquê

a andar pelas ruas estranhando as pessoas que não se movem mais como antigamente, as luzes não se acendem nem de noite, as janelas não se abrem. As coisas perderam a significado, e pela ausência de sentido, os pássaros deram para voar ao redor dos postes igual aos cães ao redor das caldas, igual aos urubus sobre nossas cabeças.

Tudo estagnou; vejo a água que não escorre colada ao corpo da calçada, não faz barulho, não dá vida, não foge dos becos dos olhos.

Só liguei para dizer que agora sou só silêncio e por isso não consigo te escrever. Os livros, todos eles, estão com as páginas em branco. À noite vejo as letras em marcha fúnebre - pressentiram a mudez da minha caneta -, passando por debaixo da porta para se perder no corredor, nos vãos dos armários, nos ralos do banheiro.

- Não estou louco.

Porém como posso escrever se as letras são silêncio, e as poucas que não me abandonaram são da mais triste estirpe, daquelas que fazem brotar soluços nos finais das cartas que sequer chegam às mãos do carteiro.

Se juntar tudo que me sobrou consigo formar uma frase

- Eu sou silêncio

e o médico confirmará isso quando encostar o estetoscópio no meu peito

- Não ouço nada aqui dentro.

- É porque este espaço faz tempo que está vago, doutor.

Fique sossegada que não disse que foi você quem o abandonou ao pegar suas roupas, seus retratos – não precisava ter deixado a moldura -, os discos. Deixou-me apenas com os livros

(- Não devia tê-los deixado. Não devia),

fique sossegada, nem toquei no seu nome, para não despertar a curiosidade dos vizinhos, que procuram uma réstia de vida colando os ouvidos nas paredes. Nem mencionei que foi semana passada que saiu de vez, para não atiçar a caneta das autoridades, ansiosas para preencher nome, data, idade, ocorrido.

- Diga o que aconteceu.

- As letras me fugiram, senhor.

- E fugiram por onde?

- Pelos meus olhos, senhor.

Não tenho forças para me incomodar com o estalo surdo do relógio que parou o tempo, a idade, o rio que virou uma grande poça de nada. A lágrima virou pele.

- O teu amor é uma montanha.

- Que montanha?

- Aquela atrás das nuvens.

- Que nuvens, amor?

- Essas na ponta dos teus olhos.

Não faz idéia como é doloroso lembrar dessas coisas. A lembrança tem um rosto incerto de fotografia antiga, os fato se alteram, como se brincassem de polícia e ladrão. Ontem mesmo me lembrei de quando fui parido pela terra. Fui forte e não chorei. Hoje, no entanto, me lembrei diferente, nasci num barracão, chorei a fome de um peito murcho, a falta do leite azedo cujo gosto ainda sinto na boca. Sabe-se lá como nascerei amanhã. Quem garante que o próprio amanhã não se confundirá e nascerá ontem, para nunca mais se encontrar, para embotar no tempo o vazio, e deixá-lo sozinho, no chão, a repetir meu mantra baixinho

- Eu sou silêncio.



Um comentário:

Anônimo disse...

Parabens!!!! Gostei muito!!!

Mariana B.