terça-feira, 15 de setembro de 2009

Memórias 2

A linha da vida, tremula entre as folhas de papel, a sombra das cerejeiras duma Atlântida Tropical, o mar transparente, de água mineral, ondas batiam suavemente na encosta dizendo que o dia há de chegar, o chão ruirá num espiral; o herói sucumbirá com o tempo. Páginas rasgadas, palavras entrecortadas no lixo me observavam aflitas. A hora está próxima.
E o vestibular, perguntou o outro lado do universo; um raio cruzou o meu mundo culminando numa pancada na nuca, diretamente das mãos macias do mundo real; encarei Maria nos olhos e roguei. O despertador tocou dezoito vezes e eu nem ouvi. Esperanças recém-nascidas subiam a escada, estampavam suas felicidades egoístas com outdoors de neon na porta do meu quarto, finjo dormir; onde está o meu caderno e o meu lápis? Recebi apostilas para devorar e morrer melhor. As esperanças da minha avó roíam as unhas, o queixo entre as mãos, olhos arregalados.
Tomo carona num navio negreiro todas as manhãs; mãos nas pernas, sorrisos forçados no retrovisor. Há algo errado com você, diz meu pai. Na minha cabeça as sereias fazem sonetos e reclamam da minha ausência. Eu tenho certeza que você passa logo de primeira, continua meu pai. Eu estava em quinta na ladeira da minha Antártida, pensei em dizer. Desço do comboio e me reúno com almas penadas, pálidas e angustiadas. Somos idênticos na aflição, meu caro; A nossa causa é perdida, soldados, mesmo feridos, não têm escolha, por isso estamos aqui, moribundos, num campo de batalha estéril e inerte; a vida é uma merda. Foram essas as únicas palavras dirigidas a mim no primeiro dia de aula. Nunca mais vi o sujeito, os anjos devem tê-lo aprisionado: sabia demais.
Em casa, escondidos, meus pés descalços dançavam no barro do chão de taco, criava presas, surpresas, fugazes alegorias de tinta azul; uma aflição põe meus ossos para bailar e as palavras, ciganas, pichavam a palavra “destino” nos muros de papelão; e o vestibular, insistiam em uníssono. Só me restava desaguar na minha Guanabara de Faber-Castell, erguendo a bandeira dos afogados.
Uma vontade de seguir o caminho com os marinheiros move o volante do meu peito rumo ao infinito; não caibo nas cadeiras com braceiras; pernas roçando, mãos trêmulas e corações batendo entre os dentes. Sonhos de náufragos, aspirações, devir na ponta da caneta. A expectativa me causa aflição (colher de metal raspada na panela de alumínio).
A lousa negra, o giz rosa, uma vontade de navegar pelas folhas em ondas de letras miúdas; tenho histórias para contar, não contava isso pra ninguém. Não posso negar a queda ao abismo. Não posso. Ecos no meu crânio. Os anjos se entreolham, sem ação, quando desenho chifres em Dom Pedro II. A princesa Isabel dançava nua na minha apostila. Eu sou o capitão do meu navio e ele não vai atracar no cais dos futuros delineados com lápis negro.
Na minha proa, as expectativas estão vendadas, minha avó fala comigo segurando o bisturi, sentindo com a ponta dos dedos gelados a pulsação do meu diploma natimorto.
“Não vou fazer o vestibular”. Escolhi o almoço de domingo; o Sol dormia em serviço e não viu nada. As mãos do meu pai em catarse, a boca viciosa da minha mãe, anestesiada de vinho chileno, desenhou um sorriso ao vácuo daquilo que esperava. O filho estranho apronta mais uma das suas. Queriam dizer falaremos a respeito disso depois, mas não disseram. Minha avó em vertigem, Netuno com batom e laquê, revoltou o mar das expectativas naufragadas, convocou os piratas e os aportou na minha cidade perfeita, ela incitou os marinheiros, os tripulantes do meu navio ao suicídio e à loucura. Não há futuro nesta vida, meu neto. As sombras não recebem salário, não se casam, não possuem imóveis. Vai viver de quê?
Eu era jogado pelos cantos do navio, destruíram meu convés, o timão foi jogado ao mar com alguns dos meus tripulantes, o fim estava próximo, convenciam-se da minha loucura; vestibular ou hospício, eu não via a diferença: que se exploda o mundo, que Netuno enfie seu tridente nos meus olhos e que a vida me atire como rojão. Quero explodir num céu estrelado, de terça-feira de carnaval, com pierrot chorando pela columbina, nua na cama do porta-bandeira. Minha Catedral de Notre-Dame sucumbiu à tempestade num copo d´agua.
Segundos antes da última bolha vejo uma mão, antiga, sapiente, puxou-me de volta para a terra com tanta força que quase me escalpelou, dedos de pedra em riste, à guisa de salvação do marinheiro perdido; empurrou meu navio de volta ao mar e jogou um pirata russo na minha embarcação. Sigamos em frente, com esperança, meu neto. Tenha esperança. Meu avô me entendia.
Seguindo sua bussola, à noite me perdi, deitado na minha cama de palha, o russo incutia idéias e um universo diferente na minha cabeça. Você não sabe de nada ele dizia. Não preguei os olhos a noite inteira, apenas ouvindo o que ele tinha pra me dizer. Eu não era Idiota, ele dizia, enquanto tatuava uma novidade no meu braço. Resoluto, vendado, com sorriso no rosto, me joguei, de cabeça, de cara, de braços abertos. Me desculpe, mãe. Não vou fazer o vestibular. As sombras aplaudiram e o Russo meneou a cabeça, mostrou-me os dentes.

2 comentários:

Renata Santos disse...

Olá Ricardo!
Obrigada pela visita que fez ao meu blog e que bom que tenha gostado dele! Apareça sempre que puder!
Agora, vamos falar desse blog "compartilhado" de vocês:
Bom demais o seu texto! Gostei mesmo!
Publique outros aqui, estou ansiosa para ler mais!
Grande abraço!

Massahiro disse...

Interessante, mudou muita coisa da versão que eu tinha lido?
Talvez seja eu, depois de reler após tanto tempo, mas agora, lendo publicado no blog, parece tão diferente.
Está incrivelmente melhor, de uma forma obscura até.
No começo, logo no primeiro parágrafo, eu me questionei se estava lendo algo seu ou de outra pessoa, foi bem incrível essa sensação.