quinta-feira, 20 de maio de 2010

Emoção

Pegou seu descontentamento, enfiou-o no bolso, dobrou a primeira esquina e flagrou-se de volta à porta da casa dela. Tencionou subir, tocar a campainha; talvez pedisse alguma coisa para beber, algo que fizesse um pedido de desculpas sem gás descer goela abaixo sem borbulhar risos contidos nas paredes das gargantas, algo que preenchesse ambos com um contentamento existencial pleno, que nem bolo de chocolate esparramado pelo pescoço, a aspereza da língua escondida entre o açúcar e o êxtase; algo que os botasse para dormir, e só acordar três, trinta, trezentos dias depois, ainda trêmulos de prazer. Seguiu em frente, cruzou um prédio onde todos dormiam, passou por pombos em estado de graça, inchados feito balões a subir pelos ares em aspirais vertiginosos. Contornou ruas, praças, avenidas e uma ponte enorme, laçando tudo com o cadarço do sapato, só para ter onde ver sua desolação jogando baralho com a tristeza da noite, emperiquitada com seu colar de estrelas. Seu coração batia ao ritmo de uma sonata de Beethoven, mas o amor dela fazia-o sentir-se como um poema obsceno do Bandeira. Repetia: Luísa, Beatriz, Maria, Ana, e cada vez que repetia pensava nos dedos finos, pernas grossas, rosto perfeito, na preocupação desnecessária com o pé da mesa roída em noites carinhosas de amor atrapalhado; lembrava do cabelo frisado logo de manhã, do vestido azul combinando com os olhos (castanhos) e com os sapatos. Repetia: Beatriz, Maria, Ana, Luísa. Na contramão de um sonho perdido, topou o primeiro beijo lendo jornal de vinte anos passados. Tempos em nos quais os lábios dela eram seu único destino: bons tempos, que permanecem estendidos no varal da memória. Por mil anos ficará sentado vendo o metrô passar todas as noites, pensando na vida, remoendo o remorso dado em retorno aos afagos metafísicos e magistrais. No fundo, joga milho ao chão porque sente saudades, o milho que ele mesmo vai catando um a um, pronunciando o nome dela: Maria, Ana, Beatriz, Luísa.

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