quarta-feira, 27 de maio de 2009

Quem sou eu?


Todos nós temos um modus operandi, tal qual a televisão de LCD que enfeita o ambiente de qualquer um dos bares desta cidade e/ou intestino de mulheres que vivem à base Corpus ou Activea.
Descobri, em busca de um auto-conhecimento em revistas de perguntas e respostas, que o caráter é a soma dos hábitos, vícios e virtudes de um indivíduo, como mijar no papel higiênico, peidar em elevadores e comer cera de ouvido. Eu ainda incluiria na qualidade de virtude: coçar o saco em vídeos de casamento, micoses de estimação, unha encravada e espancamento de mulheres que dormem de calça jeans – é preciso respeitar os ônus conjugais.
Em suma, nos olhos daquela bichinha psicóloga amiga sua e das mulheres que lêem revistas de perguntas e respostas: você é o que você faz.
Seguindo este estudo meia-boca sobre a constituição psicológica desse saco de merda que somos todos nós, também constatei com os Doutores Pernalonga e Pica-pau que temos duas vozes dentro da cabeça – me refiro à de cima, caso os homens tenham dúvida -; a voz boa que geralmente é representada por um anjinho usando fralda e uma auréola presa com arame sobre a cabeça e uma voz má, representada por um diabinho com tridente e que faz questão de usar cinta-liga.
Ou seja, via de regra, somos bunda-moles, rezamos o Pai-nosso com lágrimas nos olhos e tomamos sopa de letrinha no inverno. Agora, caso necessário, temos um inquilino fetichista e masoquista dentro de nós, que se diverte vendo o circo pegar fogo e coloca um pouco de vida nessa vida (bonito isso...).
Queiramos ou não, no recôndito da alma de cada um de nós dorme um filho-da-puta vestindo regata manchada de vômito e cueca samba canção do avesso – uma cueca pode ser usada quatro vezes antes de ser lavada, mas isso será objeto de outra história - e é este inquilino o culpado por frases como “vai que dá”, “eu já fiz isso mil vezes” e “engole que faz bem pros dentes”. As mulheres usam muito essa voz para dizer “Ele é só o meu amigo” ou “nossa como é grande”.
Essa voz ruim é a responsável por mover o mundo da literatura e pelo sucesso das colunas de fofoca. Convém agradecê-la, de vez em quando.

Enfim, quando alguém me vê na rua com certeza vislumbrará um rapaz mirrado, com as costas encurvadas, óculos fundo de garrafa, bem barbeado, perfumado, terno e gravata: um completo idiota. E é essa imagem que garante o meu trabalho, minha sobrevivência, meu vicio ao cigarro e meu IBOPE para missas noturnas do canal Rede Vida. Essa é a fantasia da minha voz boa, o disfarce do meu caráter – conjunto de virtudes, hábitos e vícios, como comer Bono com requeijão e cheirar meia suja aos domingos.
Eu não me importo que as pessoas acreditem que eu seja esse completo débil mental que aprendeu – mal e porcamente – a sempre menear a cabeça afirmativamente (concorde seu idiota, concorde, diz a voz boa). Tampouco me incomodo em ser aquele que nas festas se esconde nos cantos das casas das pessoas; bebo meu vinho quieto no meu lugar e fujo das conversas. Ouço e meneio a cabeça afirmativamente, sorriso nos lábios, vinho na mão.
Essas ocasiões costumam ser uma fonte inspiradora para os filhos-da-puta de plantão. Quanto estrago não se pode fazer em festas com vinho “à vonts”, alumiada por gente engajada em política e que considera tabu falar em beijo grego. A minha voz ruim é mais complacente nessas ocasiões. O filho-da-puta que observa o mundo com meus olhos e dorme a maior parte do tempo agüenta esses eventos com calma budista (abstraia, seu panaca, abstraia, diz a voz ruim); é preciso escolher as brigas pra não banalizar a performance e ficar manjado. Ser previsível impede que as pessoas te convidem para qualquer coisa e é uma merda ser imprevisível sozinho. Assim, os cantos são meus e enche meu copo de vinho, por favor. Aproveita e me explica de novo como surgiu essa nova crise financeira.

O interessante é que esse maldito que mora dentro de mim tem um senso de justiça que eu, por concordar, opto por não reprimir. Quando vejo algo de errado na minha frente capaz de acordar esse cara estranho, meu tom de voz se altera, minhas palavras se tornam ásperas e pungentes. Finalmente ele acorda e eu deixo que ele faça ou fale o que quiser. Machuco mesmo e que se foda; tudo pelo bem da iustitia.

Todos os dias há algum costume, uma lei, ou o caralho au quatre dizendo como eu devo me vestir, falar e me portar em determinadas situações, mesmo que eu seja completamente contra. Não posso dizer que sou contra essa instituição que se chama de mundo, pois vão me taxar de doido, depressivo (pega mais um Valium just in case...) ou idiota subversivo, mas tenho lá minhas indignações. Mastigo o miolo do pão e engulo.
Eu vou trabalhar todas as manhãs com o colarinho me apertando o pescoço, miolo do pão entre os dentes e imaginando em qual momento do meu dia eu terei de abdicar da minha condição de ser humano, de homem, de gente pensante que gosta de videocassetadas e de dormir abraçado com a mulher, para simplesmente abanar afirmativamente a cabeça e dizer: “Perfeito!”.

Pausa brindar o peido que nunca existiu.

Existem pessoas neste mundo que aprenderam a mentir, dissimular e rir de uma forma que jamais se descobrirá o que pensam de verdade. Conseguem sorrir e abraçar alguém ao mesmo tempo que a imaginam sofrendo com os estalos das duzentas chibatadas punitivas, as quais dariam com muito prazer. Viver deve ser um parque de diversões quando se açoita pessoas com vara de marmelo e cigarro pan na boca - pra causar efeito.
- Bom dia, querido – sorri e imagina as chibatadas no coffee break.
- Fala companheiro! – imagina alguém perdendo todos os e-mails e sendo denunciando pro superior. Sorri. Engole o miolo do pão, agora.
Se você acreditou quando sua mãe, em algum momento, disse que para se dar bem na vida é preciso ser justo, sugiro que comece a se calejar por que vai tomar muito safanão no pé do “orvido”, especialmente daquele cara que rouba sua borracha, sua caneta marca-texto e some com todas as suas canetas azuis (Senhores, relatórios só com canetas azuis. Fodeu). Ele sorri, lhe promete almoços. O chefe o adora por motivos que nem ele conhece. Deve ser o charme, só pode ser isso. Dente de ouro é a nova moda, por sinal.
O mundo é um arco-irís que eu não consigo ver nem a pau.

Hoje eu recebi uma ligação de um superior reclamando que eu ria alto demais.
- Dr. André, o senhor anda rindo alto demais. Gostaria que parasse.
- De rir? – pergunto;
- Não. Rir você pode, só ria mais baixo.
- Perfeito. – respondo e desligo meneando a cabeça afirmativamente (minha mãe deve estar orgulhosa).
Trabalho, trabalho, trabalho. Miolos de pão escondidos na minha gaveta. Mastiga e engole. Concentração nas noticias. Trabalho. Mastigo. Penso na minha esposa pelada. Banheiro no escuro.

- Dr. André, aqui quem fala é André, o presidente da empresa.
- Opa! Bom dia Seu Presidente. – respondo surpreso.
- Que história é essa de “opa” e “seu”, doutor?
- Por que? Opa e seu é proibido dizer?
- Não é muito condizente com a sua condição de advogado desta empresa.
- Opa não é condizente com a minha condição de advogado da empresa? – pergunto olhando para os lados, procurando algum colega de trabalho. Isso só pode ser piada.
- Não – afirmou. - Pare com isso, entendido?
- Perfeito. – meneio a cabeça afirmativamente.

Pego um pouco de miolo de pão de dentro da gaveta e mastigo com vontade. Conto até dez. Justo, isso é muito justo. De fato, opa e seu presidente não são palavras condizentes com a minha respeitabilíssima pessoa. Escrevo numa folha de rascunho: “nunca mais direi opa e seu em toda a minha vida” quinhentas vezes. Pego minhas coisas e vou para casa me sentindo uma excelente pessoa.
Minha mulher me espera, me dá um beijo. Tomo banho e durmo, cansado.
No meio da madrugada o telefone toca, minha mulher atende.
- Alô..... só um minuto. É pra você amor – diz ela.
- Boa noite senhor André, o senhor gostaria de ajudar criancinhas com doenças terminais? – pergunta uma voz animada do outro lado da linha.
De novo, esse papo de mulher me ligando de madrugada. Já não escrevi sobre isso????
- Sinceramente? – pergunto.
Fez-se um silêncio desconfortante, pensei em desligar o telefone e dormir, até que a mulher respondeu:
- Sim.
- Sinceramente, não. Digo, - tento retificar com uma resposta politicamente correta – eu ajudo outras instituições.
Desligo e volto a dormir.
Nova manhã, novo dia. Camisa azul com gravata vermelha. Hoje é terça-feira. Vou à padaria em busca de miolos de pão.
No caminho do trabalho ouço a rádio que só toca notícias. Me sinto importante, um ser acima dos reles mortais por saber a cotação do dólar e quantas viagens na faixa eu poderia ter feito se fosse senador.
- Bom dia, fulana.
- Bom dia, querido – sinto as duzentos chibatadas punitivas às minhas costas.
- Bom dia, fulano.
- Bom dia, companheiro – responde o cara que dorme nos banheiros achando que ninguém sabe disso.
Mal sento na minha mesa e o telefone toca.
- Doutor André, aqui é o André, o dono - (dessa jossa) completo mentalmente.
- Op...digo, Pois não senhor, como vai?
- Fiquei sabendo que o Doutor, na noite de ontem, não quis ajudar criancinhas à beira da morte.
- É que eu já ajudo outra instituição, senhor – justifiquei.
- Ajude mais uma então. Entendido?

Em momentos como esse, de pura incongruência, de imbecilidade, de comentários desnecessários, que a minha verdadeira índole toma forma e assassina o pobre coitado que vocês conhecem, aquele com óculos e camisa combinando com a gravata. As cores ficam nítidas diante dos meus olhos, minhas veias pulsam, minha voz encorpa e eu me sinto vivo. Finalmente um beijo da boca fria da realidade.
- Qualé Doutor? Daqui a pouco vai começar a exigir que eu ligue pro criança esperança e vote no veadinho pra ganhar o Big Brother.
- Doutor André! – grita o dono da empresa no outro lado da linha. – Que absurdos são esses?
- Não sei. Diga-me você. Já não basta filmar a minha bunda enquanto eu cago no banheiro das visitas, reclamar do volume da minha risada, do meu cabelo, da minha camisa, agora vou ter que ajudar gente que eu nem conheço? Ajuda você, caralho!

Meus colegas olham para mim. Seus olhinhos de peixe morto ganham um brilho, um brilho que pressente o desastre. Ao vivo. Alguém correu para fazer pipoca no microondas. Sangue ia escorrer por aqueles corredores de mármore e seria o meu, obviamente. Eles salivavam nos meus miolos de pão. Os holofotes faziam minhas costas transpirar.
- Você acha que está falando com quem moleque? Eu pago o seu salário!
- Mas não paga as minhas contas! Eu tenho o direito de ser livre em algum momento da minha vida, não tenho? (A essa pergunta a resposta é óbvia e as únicas pessoas que eu vi se valerem desse argumento eram idiotas de carteirinha. A minha chega pelo correio amanhã).
- Não! – respondeu obviamente o homem gritando do outro lado – Eu pago essa fortuna todo mês para você fazer o seu trabalho e honrar o meu nome, seu filho-da-puta. Quer saber? Está demitido! Tira seu rabo da minha firma. – Desliga o telefone.
- E Shakespeare nunca existiu! – gritei como tacada final, mesmo sabendo que o telefone cantava tu tu tu tu. Era importante causar impressão nos colegas. Podia ser um idiota mas a última frase foi minha e causou impacto (??).
Bato o telefone no gancho com um sorriso no rosto e uma sensação de plenitude, sinto como se tivesse feito algo inacreditável e digno de aplausos. As pessoas que agora fingiam olhar para seus monitores comprovavam isso.
Eu vivi hoje. Me sinto bem. Peguei as minhas coisas e o resto de miolo de pão que me sobrou. Fui embora.
No caminho o filho-da-puta voltou para sua toca e eu, na minha condição de bunda-mole fiquei pensando em como pagaria minhas contas e como contaria para minha mulher que perdi meu segundo emprego só nesse mês. Parei no supermercado, comprei sopa de letrinhas e queijo ralado. Fico um pouco mais tranqüilo por saber que ela me entende, sempre me entende. Ela conhece esse filho-da-puta muito melhor que eu, sabe que eu jamais conseguiria viver a minha vida como um gato que pula na cama esperando a morte. Eu preciso de vida às vezes, de um pouco de verdade, sopa de letrinhas, queijo ralado e miolo de pão.
“Merda! Devia ter imprimido meu currículos antes de sair” penso na porta de casa.

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