terça-feira, 19 de maio de 2009

Só mais um minutinho

- Boa tarde. – desejei ao vendedor com piercing no nariz e moicano laranja com roxo. Seu aspecto me remeteu imediatamente à merda de pombo da Praça da Sé.
Ficou me olhando com a cabeça inclinada, mascando chiclete. Mudo. Minha mulher olhava pra mim, eu olhava para ele, ele bufava.
Silêncio. Olhares, saco ficando cheio.
- Pois não, senhor? – finalmente uma resposta.
- Eu gostaria de saber se vocês têm um livro.
- O senhor já procurou na prateleira?
- Que papo é esse de senhor? – me alterei um pouquinho só, ego ferido é uma merda.
- Calma, amor. – minha mulher apertava meu braço.
- Dá pra você ver se tem o livro no sistema de vocês ou algo assim? Porque eu não sei como vocês organizam essa zona. Não sei se é por Autor, nome do livro, exemplares vendidos, quem paga mais... – fui interrompido por uma bufada.
- Esse cara deve ter algum problema no rabo, não para de peidar pela boca – sussurrei pra minha mulher, que ficou vermelha e olhou ao redor, pensando num plano de fuga.
A cabeça do rapaz se inclinou para o outro lado e seus olhinhos de esmeralda giraram enfadados na órbita. Olhei para minha mulher, ela suspirou e perguntou:
- Mas você quer comprar mais livros?
- Queria presentear um amigo. Ele disse que há tempos não lê um bom livro. Então vou dar a ele um bom livro.
Acompanhamos o rebolado do rapaz até o terminal mais próximo.
- O nome – disse o rapaz.
- De quem? – perguntei.
- Do Autor.
- Álvaro. Álvaro Cardoso Gomes. Você não prefere procurar pelo nome do livro? Não é mais fácil? – perguntei, esquecendo os entraves de minutos atrás.
Não consigo ficar irritado com as pessoas por muito tempo. É um defeito meu. Uma parte do sangue baiano que se mistura com o sangue alemão nas minhas veias é o responsável por isso, só pode ser. Eu fico irritado por alguns minutos, daí vem o sangue baiano e me acalma. É a ira subjugada pela água de coco.
- Não temos, senhor.
- É que é Álvaro você escreveu “Alavro” e Gomes é com “S”. Acho que você se confundiu. – esboço um sorriso forçado. Corrigir os outros é uma merda, ainda mais quando a pessoa quer que você exploda em pedacinhos bem ali, na frente dela.
Bufada. Essa foi esperada e previsível. Criatividade não é o forte desse rapaz que aparentemente é apenas um poço de simpatia.
- Senhor, temos trinta e sete livros desse autor cadastrado.
- Você fala sempre como atendente de telemarketing mesmo? Senhor isso, senhor não tenho, senhor não posso. Relaxa cara.
- Ai meu Deus – minha mulher escondeu o rosto com a mão.
- Qual o nome do livro, senhor?
- Como se atender um cliente numa livraria.
Silêncio. Rebolada sem sair do lugar. Uma mão arrumando o cabelo e a outra na cintura. Minha mulher encabulada. Fiquei esperando ele começar a escrever para falar o nome do livro de verdade. Ele, talvez um pouco acostumado com esse tipo de atitude ficou esperando a retificação. Sou bem paciente.
Lá foi ele, digitando: como se aten...
- Desculpa – disse. – Esse é outro livro. O que eu quero mesmo se chama Boneca Platinada.
Nem bufada nem rebolada dessa vez. Acho que peguei pesado. Não sou fã desse meu jeito de lidar com as situações e tratar as pessoas. Aprendi a ter estômago, seja pra agüentar as pancadas ou para não vomitar de nojo. Perdi muitas oportunidades por besteira e frases que jamais deveriam ter nascido. Minha mulher briga comigo, o gato vomita no meu travesseiro e minha editora me ignora; eu não aprendo a lição.

- Senhor...
- Amém. – interrompi.
O rapaz desferiu uma olhada fulminante. Com certeza ele faria um estrago se pulasse no meu pescoço com aquelas unhas negras, cintilantes, afiadas. Minha mulher pressentiu isso, deu um passo a frente, ficando entre o vendedor e eu. Coisas de mulher.
- Amor, vamos vai.
- Não temos o livro. – disse o rapaz e imediatamente fechou o programa de busca do computador.
- E da Márcia Denser? Tem algum?
- O senhor já procurou na prateleira?
- Achei que pelo sistema era mais fácil – respondi.
- Obrigado. – respondeu minha mulher, pegou meu braço e me tirou de lá.
- Dá pra acreditar nisso? – perguntei indignado.
- Deixa isso pra lá, amor.
- É assim que se lida com literatura hoje em dia. – disse indignado, imaginando o dia que alguém entrasse numa livraria, pedisse um livro meu e tivesse esse tratamento.

Passamos em mais quatro livrarias depois disso. Antes de perguntar pra qualquer atendente fui até as prateleiras e procurei os livros. Com dificuldade os encontrei escondidos, camuflados entre os mil trabalhos feitos com base na obra do Machado de Assis, Vinicius de Morais e outros anacronismos insuportavelmente modernos. Não tenho nada contra os clássicos, ao contrário, respeito-os muitíssimo. No entanto, esconder os novos entre os escombros dos livros de culinária e antologias com nome de apostila escolar é demais pro meu fígado.
Encontrei apenas um exemplar de Diana Caçadora - Tango Fantasma e duzentos do Harry Potter, sem falar nos milhares de títulos sob a chancela de J.B. Robb, Meyer e afins. E não digo isso com intuito de incitar uma discussão acerca da qualidade de cada autor. Isso eu deixo pros acadêmicos e entendidos do assunto. Eu posso apenas falar por mim (ou seja, o azar/risco é todo meu). Se me perguntarem – nunca perguntam...- eu digo com toda segurança que a Diana empala qualquer contendedora apenas com o olhar, muito embora ela seja chegada em alguns vampiros. Mas isso é apenas minha opinião.
- Puta merda. Esqueci de um livro. – lembrei deitado na cama, enquanto minha mulher estava no banho.
Entrei no site da livraria. Não encontrei o livro. Entrei em outro. Seis semanas pra chegar. Porra! Seis semanas pra chegar um livro é demais. Até lá já me analfabetizei por inteiro. Decidi ligar pra vendas on-line.
Vendedora eletrônica me dando boas vindas. Respondo. Digo os números que ela manda eu repetir, sigo tudo à risca como rapaz obediente e espero pela atendente.
- Loja X, Shirl... (não entendi o nome dela), em que posso ajudar?
- Desculpa. Quem ta falando? – perguntei.
- Shirl... (não entendi o nome mesmo, desculpa moça, vai ficar sem os devidos créditos nessa aqui).
- Então. Eu gostaria de comprar um livro.
- O Senhor já procurou no site? – ela perguntou.
- Eu achei que era mais fácil procurar no sistema. Acho que é mais rápido.
- Sei... – respondeu a atendente. Shir... (não entendi mesmo seu nome). – Qual o nome?
- De quem? – perguntei.
- Do Autor.
- Gustave Flaubert.
- Hã – grunhiu a atendente.
- Gustave Flaubert – repeti.
- Só um minutinho.

Muitos minutos se passaram e eu fiquei ouvindo Chopin pelo telefone, depois Bach, depois “só mais um minutinho”. Meu saco com uma puta coceira. Minha mulher deita do meu lado, massageia minhas costas. Repetem o Chopin, “só mais um minutinho”. Vivaldi na primavera, as mãos da minha mulher nas minhas pernas, seus lábios no meu pescoço. “Só mais um minutinho” repete a atendente pela terceira vez.
- Quer saber, foda-se a literatura.
Joguei o telefone no chão e avancei na minha mulher.

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