sexta-feira, 22 de maio de 2009

Uma Última Dança

Quarta-feira, 20 de maio de 2009.

Estávamos eu e minha mulher em plena alta madrugada como duas crianças, sorridentes e suados, abraçados em concha – exatamente como determina o regulamento –, um sentindo a respiração do outro, nossos cheiros se misturavam. A festa sempre começava quando ela voltava do trabalho. Eu largava o que eu estava fazendo, preparava o banho e a janta. Ela cuidava do vinho, da camisola e da cama, principalmente da cama.
Sentia pela respiração longa e tranqüila que ela começava a dormir, mas eu não conseguia acompanhá-la. Havia alguma coisa na minha cabeça, algo que eu não sabia se devia ou não fazer: um dilema.
Semana que vem, terei compromissos inadiáveis, coisas oficiais envolvendo meu salário, meu trabalho, complete bullshit e perda de tempo, pensei. Assim, usando o melhor critério que há para escolha de algo – a eliminação – decidi que me sobrava apenas amanhã para me despedir de uma amiga. Uma grande amiga.
- Acho que amanhã vou me despedir da Velha – disse.
- Hein? – perguntou minha mulher.
- A Velha. Lá na Roosevelt. Tenho que ir amanhã, semana que vem vai ser impossível, palestras, trabalhos; tem que ser amanhã.
- Amanhã eu não posso ir – respondeu meio dormindo, meio acordada – tenho reunião cedo na sexta – e apagou completamente. Só ouviria sua voz novamente no dia seguinte.
Tudo bem, pensei. Amanhã eu vou. Qualquer coisa eu vou sozinho; eu me dou bem o suficiente com a Velha pra visitá-la desacompanhado.
Satisfeito com a minha resolução, joguei o gato no chão, em cima do cachorro, e dormi.

Quinta-feira, 21 de maio de 2009.

- Felipe, tá a fim de ir ver a Velha hoje?
- Hoje? – perguntou a voz do outro lado da linha.
- É, porra! Eu disse hoje, não disse? Hoje, quinta.
- Você andou cheirando? Tá mais acelerado que o Road Runner (Papa-Léguas em português, mas Road Runner é mais conveniente, digamos assim...). Relax, cara. Relax. Mais tarde eu te ligo e combinamos.

Ele topou. Assim que fareja cerveja, conversa jogada fora e mesa de bar na Praça Roosevelt, ele cancela até reunião com o presidente. É um cara bacana.

Eu e o Felipe chegamos mais cedo, tomamos umas cervejas, fumamos uns cigarros, negamos umas esmolas, nada fora do comum.
Onze horas, a Roosevelt lotada, gente bebendo, fumando, rindo. O coração da cidade batia ali, naquela praça.
Gosto das noites de São Paulo. Não importa onde você está, tem movimento, gente falando e histórias pra contar e isso é o mais importante.

Eram onze e dez ou onze e quinze quando tocou o sino. Fui um dos primeiros a entrar e escolhi meticulosamente meu lugar. Assim que sentei os acontecimentos se passaram como um relâmpago e tal qual um relâmpago, um lampejo de vida, os descreverei.

Estava ansioso. Essa noite será diferente, seremos apenas a Velha e eu, pensei. O Felipe estava preocupado com um casal de lésbicas se beijando num canto, ele pensava se elas deixariam ele entrar na dança se pagasse um traguinho pra elas.

Sento na minha cadeira, inquieto. Minhas mãos suando, síndrome das pernas inquietas, Felipe bêbado, lésbicas se beijando e ele cada vez mais próximo delas, salivando.

Aplaudi fora de hora, ecos, a Velha me olha, ouço risos. Ela me encara. Naquele tempo as pessoas tinham talento; essa frase ecoa na minha cabeça como um diapasão. Neruda passa dançando à minha frente, bêbado como eu; dançamos funk juntos. A Velha não gosta, reclama e bebe da nossa garrafa. Cigarros importados enfeitam a mesa e nossas mãos.
Entra um moleque estranho, tatuagem inidentificável no braço, rouba a cena. “Maldito, como ousa!” penso com os meu botões, sentindo falta da Velha. O rapaz é bom, até que gosto dele e olha que não sou de gostar das pessoas, muito pelo contrário. Turbilhões e muitas coisas se passando pela minha cabeça. Posso dormir aqui; posso morar aqui e virar uma espécie de negociador. Se depender de mim a Velha nunca vai se sentir sozinha. Já trouxe umas quinquishmintilhacacan pessoas pra conhecê-la. Todos a adoram. Ela gosta, eu sei que ela gosta, conheço seu sorriso.
Ela volta a me encarar, come uma banana com dignidade e respeito inimitáveis, exatamente como fazia no seu tempo de star. Eu estou zonzo, com o coração se remexendo fora do ritmo da dança. Desligam meu celular. Este texto está muito estranho, alguém chama o Dr. Kafka, por favor.
Vi a Velha parir na minha frente. Chorei. Não queria ir embora, mas sabia que estava no fim. As luzes acenderam, ela não estava mais lá. Olhei o cenário ao meu redor, lembro da primeira vez que pisei ali. A primeira vez.
A primeira vez que vi a Velha me choquei comigo mesmo, com o Universo, nem um pouco a contragosto; na segunda ri, entendi-a, nos entendemos. Naquela noite escureceu mais do que o normal; não me incomodei. Na terceira, agora sim a contragosto, chorei.
Não pude dizer adeus à Velha da forma que queria. Embora a noite tivesse sido para nós dois - eu e ela, num reservado, no escuro, compartilhando Vodca barata -, ainda queria dizer algumas coisas antes de ir embora, mas não pude. Os ônibus depois da meia-noite param de circular pelas ruas e, da casa da Velha para a minha são duas horas – se eu conseguir pegar o último ônibus, é claro - ou noventa reais de taxi – eu sei por experiência própria. Então parti com palavras perdidas nos lábios e coração vazio como o copo que ela deixou em cima da mesa.
Cheguei em casa abatido e descabelado. Parecia um acidente de carro. Minha mulher me abraçou. Sabia o que tudo aquilo queria dizer pra mim. Um fim provavelmente irremediável. Teria que guardar minha máquina de escrever e colocar as cartas que eu havia escrito prum escritor que tenho como um amigo, Hackmuth, na gaveta. Sem a Velha por perto, tudo perde um pouco o sentido e o matiz.
Na cama, minha mulher colocou minha cabeça em seu colo. Cafunés intermináveis e apenas uma única voz conversava comigo: “Naquele tempo as pessoas tinham talento...”, “naquele tempo, as pessoas tinham respeito”, “naquele tempo...”.
- Ela vai voltar. Eu sei que vai. Sua amiga vai voltar. – dizia minha mulher.
As palavras dela me acalmaram pela simples razão de sempre estar certa.
Minha mulher sabe das coisas.

Dedico essas linhas tortas ao Marcelo Mirisola, Alberto Guzik e Chico Ribas.

Um forte abraço.

Monólogos de Uma Velha Apresentadora
SATYROS I
Praça Roosevelt, 214.
Últimas apresentações.

5 comentários:

Massahiro disse...

LOL
Relaxa que a velha volta. Sempre volta, só vai dar uma saidinha para o rio, perhaps?
O.o

André Freitas disse...

Vai saber....
O lance é esperar e ver no que dá.

Abraços

Isabella disse...

que graça...
também adorei a velha!

Anônimo disse...

Ela foi pra Miami, vai dar uma guaribada nas pelancas, e volta.
Falou, André?
Abração,
MM

Chico Ribas disse...

Grande André. Que texto lindo. Emocionado estou eu.
Adorei o "moleque estranho, tatuagem inidentificável no braço". A Tatuagem é um compasso da partitura Besame Mucho - música que meu avô mais gostava.. (ele faleceu há um mes e meio.)
E preciso te falar uma coisa. Eu entendo muito bem isso que você escreveu. NO ano passado eu vi 12 vezes uma peça chamada "Uma pilha de pratos na cozinha" do Mário Bortolotto e quando a peça acabou eu fiquei muito mal. Só que um tempo depois, eles me chamaram pra fazer a produção do espetáculo. Enfim... a velha hoje me deixou um vazio enorme. Sinto muita falta daquele ponto. Foi sem dúvida um personagem muito importante na minha pequena carreira.
E que bom que esse trabalho tocou sinceramente você. Eu poderia dizer que me sinto assim... Missão Cumprida. Muto obrigado pelo carinho, pelas idas à praça... enfim.
E aguarde a velha. Ela vai estar de volta em breve.
Abraço querido!